domingo, julho 11, 2004

UMA CARTA...

Meu caro amigo.
Você me pergunta por mamãe, papai, Lucas e até por vovó você pergunta, como se não fosse óbvio que eu não saiba mais dela. Todos já se foram, W., todos os que mais amei. Lucas foi assim de repente, como quando se escondia nas brincadeiras daquelas noites quentes da fazenda, quando ninguém o encontrava. Um telefonema, uma frase, Lucas morreu, o chão desaparecendo debaixo dos meus pés, a raiva, ele tinha apenas 27anos. Não era natural, não era. Esperei que ele viesse me dizer porquê, mas ele não veio. Passei noites inteiras olhando para cima do guarda roupas, esperando vê-lo sentado lá, com aquele queixo erguido, e o sorriso de lado, cínico. Mas ele não veio. Todos se recuperaram em mais ou menos tempo. Eu não. Eu fiquei anos a fio esperando uma resposta. Depois foi vovó. Três anos depois. Mas vovó já estava meio morta há algum tempo e não doeu muito. Papai, dez anos depois. Lenta agonia. Foi como se ele fosse se decompondo aos poucos. Derretendo como chumbo sob uma chama, se transformando numa coisa disforme, assustadora. Mas eu era jovem e suportei. Continuei a viver eternamente. Faltava alguma coisa, tinha uns buracos em volta, mas nada abissal. Uns buracos que eu nem notava na maior parte do tempo. Mamãe não morreu. Mamãe desapareceu no ar como se aquele deus tivesse soprado e a poeira dela fica aqui me fazendo cócegas, dia e noite.

Aí o buraco se fez maior, um abismo, e eu fico sentada na orla, sem saber o que fazer. E a morte, a idéia dela, a forma exata dela, grudou na minha pele e, nem que eu queira, consigo me soltar. E eu nem sei se quero. Olho-a quase de frente, e finjo que não a temo. Mas isso é normal, não é W.? Só não entendo porque as outras pessoas fingem que ela não está aí, ao lado. Na verdade, nem sei ao certo se a temo. Ou se a amo. Não será, no fim, a mesma coisa?

Quantas vezes você me fez acreditar que eu teria que me preparar para perde-los. E eu fiz isso, W. Juro que fiz. Mas não deu certo, devo informa-lo. Doeu do mesmo jeito. Ou mais, porque eu não podia entender porque doía se era inevitável e eu já sabia disso. E eu não consigo pensar na minha própria morte sem sentir um nó no estômago. A minha cabeça diz sim, mas o meu corpo não quer, não quer. O que é que nos faz eternos? O que é que nos prende com tantos e tão fortes tentáculos, como se viver fosse inevitável? Às vezes penso que bastaria tão pouco, uma decisão, como se assinasse o fim de um capítulo. Ponto final.
Com todo amor de que ainda sou capaz...

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