Cartas da Mãe


Estas cartas faziam parte do Jornal Com Senso. Há repetições (adaptações para outros governos) que não tive tempo de revisar.

Pé da Serra, 10 de setembro de 1998.

Querido Fernando.
Que beleza, hem Fê! A bolsa cai e você sobe. Ao que tudo indica, o comunistazinho vai se candidatar em 2002, que esta já é sua. O Dô anda tão desanimado que - disse ele - se não fosse ateu, já teria encomendado a algum santo, uma hecatombe do tipo pro sertão virar mar, pra ver se teria algum efeito na porcaria da sua candidatura. (O "porcaria" é dele). Eu acho que nem uma catástrofe dessas ia fazer você cair nas pesquisas, mesmo porque parece que o povo está muito satisfeito com o seu governo. Eu, que sou sua mãe, não entendo porque, imagine o Dô que nem parente de 3º grau é. Mas cá pra nós, Fernando, você não acha que do jeito que a coisa vai, você não vai morrer de arrependimento de ter-se candidatado de novo? Pior ainda: você acha que vai conseguir manter as aparências até o dia 8 de outubro? Não quero fazer parte da horda dos pessimistas, mas você não acha que vem uma nevasca por aí? A fila do sopão da Irmandade Fraterna de Pé da Serra tem aumentado bastante. A situação tá tão esquisita que até o Zé Rosa que nunca participava do sopão ( só para não ter que tomar banho, porque lá, você sabe, só se come depois de se lavar) tem sido assíduo e é de se espantar como está limpinho e penteado. Seu primo Bráulio continua sem emprego e parece que vai ficar assim para sempre. Faz alguns bicos aqui e ali, mas fichar ninguém ficha, e outro dia passamos uma magrela, precisava ver! Fico meio constrangida de contar mas a verdade é que ele tentou se enforcar, Fê. Escapou porque ao invés de colocar a corda no pescoço, colocou na cintura (diz ele que se colocasse no pescoço como é de praxe, iria sufocar e ele já sofre de falta de ar, imagine!) De qualquer maneira foi muito desagradável encontrá-lo pendurado na goiabeira e tivemos que chamar o Cabo Pires, porque eu e a Cotinha não temos mais forças para essas coisas. Além do mais ele engordou um pouco e a corda voou da barriga para debaixo dos braços.
Depois disso, passamos um bom tempo tentando confortá-lo. Dissemos que ele não está só, que igual a ele existem 30.000.000 de pessoas, todas na miséria total, que breve ele arranja um emprego e vai prosperar na vida de novo ( ao que ele me lançou um olhar envenenado), que você está prometendo mundos e fundos ( outro olhar enlouquecido), que nem tudo está perdido, etc., etc., o que não adiantou muito. Mas ele já está melhorzinho, não se preocupe.
Soube que você está apertando o cinto para controlar a crise. Só espero que não aperte mais o nosso cinto, porque ninguém aguenta mais. O seu, pode até apertar que anda bem folgado. E a Rutinha? Melhorou? Diz pra ela tomar um chá de funcho bem quentinho que é muito bom pra batedeira. A Cotinha tem de vez em quando essas palpitações. Não é nada grave. Acontece muito quando ela come girimum com costelinha. Depois passa.
Vou ficando por aqui, porque tenho que ir até a cadeia levar umas rosquinhas pro Cabo Pires, que tem me olhado meio esquisito. É melhor prevenir do que remediar. Saudades da sua mãe que lhe quer bem, apesar de tudo, Filó.
Ps. Tem ido à missa?

Nota da Redação:
Filó tem quase 80 anos e faz biscoitos de araruta como ninguém. Mora e sempre morou em Pé da Serra, uma destas cidadezinhas encravadas no fim do mundo e tem idéias muito próprias a respeito de tudo que acontece. Tem uma irmã, Cotinha, e um gato, quase tão velho quanto ela, o Mário Covas. Não sei se culpa da idade ou por uma espécie de consciência que lhe dá poderes de assumir este papel, o certo é que Filó jura que é mãe do Fernando Henrique. Mãe é mãe, mesmo que seja a do presidente.




Oi Fê!

Eu bem que te avisei! Cansei de te falar que esse amigo Bill não era boa companhia. Mas você deu pra teimar comigo e ficou ai nessa futriquinha de vizinhos com um sujeito que não tem um pingo de vergonha na cara! Muito me admira, Fernando Henrique! Aposto até que você sabia das pilantragens desse...desse cara de amendoim. Desaprovo inteiramente sua amizade com esse imoral, essa mancha horrorosa num pais sério. Porque, Fernando Henrique, nunca vi um povo tão cheio de princípios morais, quanto o povo americano. Benza Deus! Voce deve deixar de lado essa sua amizade com o Bill mas intensificar suas relações com o povo americano. Só mesmo gente impoluta, com moral elevadíssima, com costumes seríssimos, faria tanto alardeio sobre a vida sexual do seu presidente. Se fosse com você ( Ave Maria!!) o povo daqui no máximo faria uma ou outra piadinha e seguia em frente. La não. La eles vão às ultimas conseqüências, querem saber tudo, ate se as calcinhas da Monica Lewinski eram rendadas. E isso tudo é mesmo muito importante para o bem estar do povo americano, voce sabe. Americano que se preze não vai deixar passar em brancas nuvens um caso extra conjugal do seu presidente. Mais fácil deixar passar uma guerra no Golfo, ou uma retaliação vergonhosa ao povo cubano. Isso não derruba nenhum governo americano, mas se o Presidente se masturba ( se não pensar na Hillary, porque aí pode) o povo arruma uma quizumba tão grande que o desgraçado ou renuncia ou é renunciado. Que povo de moral irreprovável, hem Fe? Que maravilha! A Cotinha esta tão fã do povo americano que até aposta que a maioria é virgem, que não existe adultério lá, que as pessoas casadas só fazem sexo com a aprovação do Papa e só pra se reproduzir! Eu fiquei mais maravilhada ainda mais porque não só o povo exige que a vida privada do presidente seja um livro aberto ( desde que na pagina certa ) mas que a verdade, somente a verdade seja dita! Ou seja, o mais importante de tudo é que o Bill diga a todos que realmente as calcinhas da Mônica são rendadas, quantas vezes praticou o ato sexual com ela e outros detalhes dos quais me envergonho de te falar, porque sou sua mãe. O que não pode é mentir. Aliás, você deveria aprender um pouco com esse povo. Pelo menos a não ter uma cara tão cínica quanto mente. Outro dia você disse que é irônico e que isto tem te trazido muitos problemas. Agora eu entendi! Era só ironia quando você dizia que o ano passado seria o ano da saúde! Estava só sendo irônico quando alardeou que a taxa de desemprego estava até caindo! Estava fazendo gracinha quando disse que o povo brasileiro era caipira! Muito engraçadinho você, Fernando!
E a gente aqui acreditando que o Presidente estava falando sério. Até te julguei mal. Pensei que você fosse o maior mentiroso da paróquia e você é só irônico. Que coisa!
Vê se para de andar em más companhias, deixe de ser cínico, aproveite o Natal pra fazer um retiro espiritual, jejue e peça a Deus pra te livrar das tentações. Se encontrar com Bill na rua, faça de conta que não viu, pra não abalar sua reputação. Senão, nem o povo americano vai querer ser seu amigo. Não tome gelado e evite vento pelas costas.
Da sua mãe que tem uma moral americana, Filó.

Carta da mãe

Fernando de Deus!

Ainda bem que não fui convidada para a festa de aniversário do Brasil. Você se lembra da festa de aniversário do Bráulio, quando ele fez 11 anos? Lembra dos comentários do dia seguinte? Que faltou refrigerante, que o bolo era de isopor, que ninguém conseguiu pegar um balão e por cima, que a maionese deu dor de barriga e que a cidade virou um mar de m...? Pois é. Os comentários aqui em Pé da Serra não são melhores. Estou evitando sair de casa, ou, se saio, levo o guarda chuva aberto para esconder a minha cara vermelha de vergonha. Se bem que não acredito que seja verdade. Você sabe como esse povo é fofoqueiro, mas vou lhe passar os horrores que estão dizendo para que você tome providências e mande abrir uma CPI do aniversário para saber quem são os culpados desses boatos que podem denegrir seu nome.
Dizem que os convidados foram recebidos a bala. Nada mais apropriado.Todo aniversário que eu fui tinha bala delícia o que não é desdouro para nenhum aniversariante, muito pelo contrário. O que eles estavam esperando? Bombons de licor? Era só o que faltava.
Dizem também que os convidados ficaram do lado de fora porque os milicos não os deixaram entrar de jeito nenhum. Pelas fotos que eu vi não podiam entrar mesmo. Como é que se vai a um aniversário de tanga?! Ou esfarrapados e mulambentos? Sem contar que havia até gente com os balangandãs quase a mostra. Você teve toda razão de deixa-los do lado de fora em prol da moral e dos bons costumes.
Dizem que a nau Capitania não conseguiu navegar, que enquanto a nau que trouxe Cabral há quinhentos anos, flutuou direitinho de Portugal ao Brasil, essa aí quase afundou na baia. Eu nem acho que ela devia navegar. Ou por outra, será que Cabral veio mesmo numa nau? Acho que ele veio de avião ou foguete. Ninguém vai acreditar que uma embarcação feita há quinhentos anos, fosse capaz de navegar tantos quilômetros, depois de ver uma réplica dela afundar feito machado sem cabo. E tinha até motor! Dois motores! E tinha freezer, microondas, telefone, radio, o escambau. E foram gastos três e meio milhões de reais! Cá entre nós, Fé, será que ela não ficou muito pesada?... Acho também que o Rafael Greco estava muito gordo e pode ter contribuído, se é que ele se arriscou a entrar no navio que ele mesmo mandou fazer. Você fez bem em demitir esse indivíduo.
Dizem que Cabral foi mais civilizado quando aportou aqui em 1500, que não evitou nenhum contato com os índios, muito pelo contrário. Mas é claro, né Fé, eles eram seis milhões e, hoje, são apenas trezentos e cinqüenta mil. Além do mais eles eram os donos da casa. Hoje eles são convidados dos donos da casa e deviam se portar como tais. Mas não. Cuspiram no prato que comeram, não mostraram nenhum agradecimento por esse povo majestoso que os colonizou. Muita ingratidão!
No fim deu tudo certo, né Fê, apesar dos boatos. Nenhum morto ( só um ferido de leve), nenhuma ressaca, a maionese não deu dor de barriga, graças a Deus, porque se houvesse mais diarréia nesse país, isso aqui viraria um dilúvio de m... Só a farofa não deu para todo mundo, é claro, porque tem gente demais nesta festa, e você sabe... farinha pouca, meu pirão primeiro. Espero que no próximo aniversário você tenha convidados menos famintos e esfarrapados. Por falar nisso, o seu amigo FMI veio para a festa? O Dô disse que ele foi o primeiro a chegar e vai ser o último a sair.Ele reclamou dos salgadinhos? Conseguiu pegar algum balão? Ainda bem. Vai começar a contagem regressiva para os 1000 anos? Na Globo? Não quero perder. Beijos da sua mãe que não foi convidada para a festa, graças a Deus. Filó


Pé da Serra, dezembro de 1999.
Meu querido Fernando.
Como tem passado, meu filho? E a Rutinha melhorou da pressão? Sentiu falta das minhas cartas? Ainda estou muito enfezada com você, mas diante do que tem acontecido, achei melhor escrever para esclarecer algumas coisas.
Não tenho visto muito televisão, porque você sabe, não posso ver um gato morto que fico deprimida, quanto mais gente. Logo o que fico sabendo, é pelo Dó, quando vou a farmácia. Acho ele meio exagerado, mas mentiroso não, e acabo saindo de lá pior do que se estivesse visto o Ratinho,o Jornal nacional ou o cidade alerta. O Dô foi a única pessoa da cidade que ler todos jornais. A banca fica em frente da farmácia e como ele não tem tido muitos fregueses ( em compensação o terreiro de Inha Lica vive cheio), passa o tempo lendo as manchetes. E espalha as noticias para os gatos pingados que vão lá na farmácia. Como quem conta um conto aumenta um ponto, você pode imaginar que horrores estão espalhando por ai. É claro que, como mãe, não acredito na metade dos boatos que correm em Pé da Serra sobre o que tem acontecido no seu governo, mesmo porque é impossível que tudo isso esteja acontecendo em qualquer lugar deste planeta.
A ultima do Dô foi que os trabalhadores que faziam uma manifestação ai na sua cidade foram metralhados. Fiquei furiosa e disse para ele que era balas de borracha. Ele riu na minha cara e disse que bala de borracha não mata e nem aleija ninguém e que havia um homem morto e dois cegos pelas tais balas. E que isso aconteceu na porta da sua casa que por sinal esta caindo aos pedaços. Que se a casa do presidente tem goteiras, que dirá a casa dos simples mortais.
Essa foi a ultima do Dô, agora o pior, é que depois que ele espalhou pela cidade que existe uma quadrilha formada de políticos com conexão internacional para trafego de drogas, o povo de Pé da Serra fez um abaixo assinado pedindo ao prefeito que anexasse Pé da Serra a Colômbia que é mais pacata. O cabo Pires ficou tão traumatizado que deu voz de prisão ao Sé da grota ( ele é vereador ) quando viu uma Kombi descarregando uns pacotes suspeitos na garagem da casa dele. Foi um vexame,Fé! Era a Kombi de venda do Tião macaco, e os pacote eram só sabonetes lux, porque o Zé da grota estava aproveitando uma promoção daquelas pague 2 leve 1( ou contrario, não sei). Juntou gente na porta do Zé, houve até quem ajudasse o cabo Pires a abrir os pacotes. Foi sabonete para tudo quanto é lado! Mas o cabo Pires, não satisfeito, picou todos os sabonetes, aos berros de que as drogas estão ai dentro! Conheço essa gente! Etc e tal. O povo, alarmado e exitado, gritava pega ladrão! Carniceiro! Assassino! Estuprador! Dilhermando de Pé da Serra! E Zé da Grota só não foi preso porque pulou a cerca ( no bom sentido) do quintal da igreja e, por obrigação cristã, o padre Pinto deu lhe asilo político.
Na achei certo toda aquela perseguição ao Zé da Grota, mas ninguém pode censurar o cabo Pires. Afinal, o Zé é vereador mas pode chegar a deputado, que fama ele já fez. E o cabo Pires só quis prevenir. Parece que a carreira política do Zé vai parar por aqui, o que acho até bom, porque o Zé me parece uma boa pessoa. Vai que ele seja mesmo decente e preocupado com bem estar social. Acho preferível ele continuar como professor na Escola Municipal e deixar de lado essa coisa de política. Ele tem dois filhos para criar. Pode também ser porteiro de rende-vouz, pelo menos seus filhos não terão do que se envergonhar, não acha, Fé?
Cotinha manda um abraço. Seque em anexo a novena de nossa senhora dos impossíveis. Não deixe de ir a missa, não tome gelado e, quando sair as ruas leve sempre sua carteirinha de presidente, porque a polícia não vê cara.
Um beijo desolado da sua mãe.
Obs. Se for trocar a mobília do palácio, mande aquele sofá velho para mim.Ainda tem concerto. Fica como presente de Natal.
Pé da Serra, janeiro de 2004


Querido Lula.

Como tem passado? Aqui em Pé da Serra, anda tudo como Deus quer. Ficamos esperando a sua visita depois da enchente. Porque não veio? Mesmo que fosse para fazer uma mediazinha, você bem podia ter dado uma chegada até aqui. Inhá Lica até fez um despacho para te remeter para cá, mas parece que ela usou um frango caipira ao invés de pombo branco (que era o certo) e deu em nada. Tivemos até uma pequena discussão porque eu achava que uma novena ao São Judas Tadeu seria muito mais eficaz. Nem tico nem taco. Acabamos comendo o tal do frango com farofa. Aliás, foi a única coisa que muita gente comeu por aqui desde o final das chuvas. A água invadiu a rua Direita e a farmácia do Dô naufragou. O Tião Macaco viu seus sacos ( de batatas) rolando rua abaixo e se não fosse ter amarrado a cama da Vó no mastro da Igreja, a coitada tinha ido pro saco também. Mas boiou, graças à Deus, declamando Navio Negreiro noite e dia para desespero do povo. É que a Vó do Tião é descendente de escravo e como está meio esclerosada pensou que estava navegando dentro de um porão de navio escravo. Para ela foi tudo muito divertido e quando a maré, digo, as águas baixaram, ela deu um sopapo no Tião, chamando-o de timoneiro bêbado, porque o barco balançou muito durante a viagem. Ele nem se importou muito porque tentava salvar os seus sacos da enchente (sacos de batata). A Cotinha está dormindo dentro do guarda-roupa, com mais a família de Zé do Bigodinho, porque o quarto dela foi transformado em abrigo, e não tem lugar na casa nem para cuspir. Mesmo assim, se você viesse, a gente tinha guardado um lugarzinho num dos beliches. Era junto com o seu primo Bráulio, mas de todos os seus desafetos, pensamos que ele seria o menos perigoso, por terem laços de sangue. Talvez o mundo acabe antes disso, contra todas as previsões, em dilúvio também. O padre hilário não confia muito nisso, mas o Pastor Tom Cones já está fazendo a arca ( com a ajuda dos fiéis) e jura que tem duas espécimes que ele não vai deixar entrar na arca de jeito nenhum: cupim, ( por motivos óbvios), políticos e economistas. Os dois últimos, por caridade cristã. Por via das dúvidas, é bom você ir preparando sua própria arca.
Sem mais, se puder mandar uns cobertores, vai ajudar muito. Se não for pedir muito.
Da sua mãe, flagelada, Filó.
Pé da Serra, novembro de 2000

Fernando, Fernando!
O que está acontecendo aqui em Pé da Serra não pode estar acontecendo no resto do país. Não pode não. Porque se tiver, valha-me São Judas Tadeu! É o fim! Vou te contar, Fernando, que é para você tomar as devidas providências, não é candonga nem nada., porque eu não sou dessas coisas, você sabe muito bem. ( só não repito o lugar que ele indicou porque fica muito feio para mim), que do jeito que as coisas vão, não vai sobrar dinheiro nem para um posto de saúde em Longepraburro, e lá só tem cinco habitantes, que dirá Pé da serra, que já conta com uns quinhentos.
Só estou te contando isso, Fernando, para que você providencie um dinheirinho extra para o N. Sra. Da Penha. Mesmo que o prefeito seja o culpado, você é quem manda nessa porcaria toda e pode muito bem desviar um pouquinho do dinheiro arrecado e mandar para cá. Ninguém vai saber, eu juro, porque aqui não existe nenhum dedo-duro. A única pessoa aqui que tem gravador é o Chico da Hortência. Mesmo assim o Chico só gosta de Xitãozinho e Xororó e não vai querer gravar calúnias.
Outra coisa, Fé: o Dô está usando a farmácia para VENDER JOGO DO BICHO! E na maior cara de pau! Diz ele que, se lá em Brasília todo mundo faz a sua fezinha e ninguém é preso, porque ele seria? Diz mais: que isto aqui tem que prosperar e já que a agricultura, que era o forte daqui, foi pro brejo, que tem mais desempregado que pequi no mato, ele está colaborando com o fim do desemprego, pelo menos em Pé da serra. Que o resto do País é com você. Que pelo menos o jogo do bicho é honesto e que aqui se paga o prêmio direitinho, e que aí em Brasília o prêmio é pago com o dinheiro da gente. Eu disse que ia contar tudo para você, que isso não é lícito e coisa e tal, ele deu uma gargalhada na minha cara e mandou um recado para você. Que você abrisse uma banca aí no Palácio que este é um jogo mais limpo. O descarado! Você me faz passar cada vergonha, Fernando! Ao vou mandar biscoito de araruta desta vez. Sem mais delongas, fico por aqui rezando um terço pela sua redenção. Tia Cotinha manda um beijo e um pito. Fala para a Rutinha que mando a receita do bolo Sinhá de outra vez.
Um beijo da sua mãe que te perdoa, Filó.
Os. O cabo Pires ganhou três mil e quinhentos contos no bicho! Sorte, hem?!!










Pé da Serra, 27 de junho de 1998.

Querido Fernando.
Seu primo Bráulio amontoou aqui de vez. Ele, a mulher e o Junior. Não que tenha alguma coisa contra hospedar parentes, você sabe, até gosto. Mas não para toda a vida. O Bráulio perdeu aquele sorrizinho cínico e o emprego. Não sei em que ordem, mas perdeu os dois e mais alguma coisa. Ele e o Tião Macaco que perdeu a venda e portanto o emprego, somam mais dois na lista de desempregados. Agora já são 16.000.002! Fico aqui imaginando se todos esses desempregados resolvem fazer uma passeata, juntando os sem terra e os retirantes, os pequenos empresários falidos, mais as mulheres deles, os tios, tias, avós, cunhados! Sei não, Fernando, acho que daria pra fazer um exército descomunal! A gente poderia até declarar guerra aos EEUU que com um exército destes não tem arma nuclear que agüente. Com que armas? Ora, Fernando Henrique! Você me saiu um belo sociólogo se me fizer uma pergunta desta. Mas há uma detalhe nesta história que me preocupa: você acha que estes 16.000.002 de desempregados, mais as mulheres deles, tios etc, mais os sem terra, e todos os outros sem alguma coisa...eles têm título de eleitor? Se têm, você tá frito, meu filho! Se o tal do comunistazinho ( tenho prestado mais atenção, ele é até bonitinho, e nem acho mais que ele é ateu, pois vi ele erguer as mãos para o céu e gritar “Nossa Senhora!”) parar com essa briga de comadres com você, e colocar preto no branco uma proposta viável de governo, se, nesse meio tempo, essa impressão que a gente tem de estar afundando lentamente na areia movediça (não é bem areia que eu queria dizer, mas sou uma dama) continuar, tenha certeza: você estará duplamente frito! Se a seleção continuar jogando como está, você está pentamente frito! Mas não é disso que quero te falar. É do seu primo Bráulio, coitado. Sei que seu anjo da guarda não se dá com o dele, mas pelo menos ele parou de rir e de fazer comentários maldosos a seu respeito. Agora ele está mais objetivo e só não repito aqui o que fala de você entre os dentes porque desde pequena, nunca falei um palavrão na vida e não vai ser agora. Pensei que já que você não pode dar um jeito na vida desses 16.000.001, quem sabe de um fosse mais fácil? Você pode arrumar para ele ser assessor do Gustavo Franco, porque falar bestagem ele fala muito bem. Aí, tudo que o Tavinho falasse podia jogar em cima do Bráulio. Ou preferia o Braulio com você? Não é uma boa idéia? Afinal, o Bráulio é seu primo, e caridade começa em casa. Quando eu digo casa eu quero dizer casa da gente e não o Congresso, se é que você me entende. Você ia fazer o Bráulio muito feliz e à sua mãe também, porque não vou aguentar sustentar tanta gente com a aposentadoria mixuruca que tenho. Mande a resposta pelo portador desta, o Zé Bigode, antes que seja tarde. O que o Zé Bigode está indo fazer em Brasília? Fazer lobby para a turma dos Menores Aposentados da Vila Clotilde. Eu não sei bem o que é “lobby” e nem que associação é essa, mas conheço bem a Vila Clotilde e o povo que mora lá não freqüenta a fila do banco para receber a aposentadoria. Disso eu tenho certeza. Deve ser alguma coisa muito importante, porque o Zé Bigode até comprou um terno novo e uma gravata de bolinhas. Achei meio espalhafatosa, mas gosto não se discute.
Está fazendo a novena para Santa Edwiges? Pois pode mudar de santo que essa aí não vai ajudar muito. Que tal tentar Nossa Senhora dos Impossíveis? Não é uma boa idéia?Fique com Deus e mantenha a linha, meu filho. Um beijo no comunistazinha simpático. Sua mãe anti-facista, Filó.
Nota da Redação:
Filó tem quase 80 anos e faz biscoitos de araruta como ninguém. Mora e sempre morou em Pé da Serra, uma destas cidadezinhas encravadas no fim do mundo e tem idéias muito próprias a respeito de tudo que acontece. Tem uma irmã, Cotinha, e um gato, quase tão velho quanto ela, o Mário Covas. Não sei se culpa da idade ou por uma espécie de consciência que lhe dá poderes de assumir este papel, o certo é que Filó jura que é mãe do Fernando Henrique. .Mãe é mãe, mesmo que seja a do presidente.















Pé da serra, 03 de Agosto de 1999.

Fê, meu filho!

O que você está aprontando agora, Fernando? Porque esse povo todo, por onde você anda, só falta jogar ovos e tomates podres na sua comitiva? É assim que você quer ser re-reeleito rei? ( Isto é: presidente?). Assim não vai não, Fernando. Será que é por causa do PROER? Do IPMF? Dos Sem Terra, dos Sem Teto? Dos Sem Saúde? Dos Sem Emprego? Dos Sem Vergonha Na cara ? Tá certo, Fernando, você acabou com a inflação ( uma beleza!) mas tinha que acabar com o resto? Já era tão pouco, Fê! E se ela explodir antes?
Sabe, Fê, o Dô anda espalhando por aí que isto aqui vai virar um novo México. Fiquei toda arrepiada quando ele disse isso. A Cotinha fez o sinal da cruz umas dez vezes ( quando o certo são só três vezes, senão não funciona) e viemos para casa procurar nos jornais velhos, para ter uma idéia mais precisa do que ele quis dizer com “novo México”. Nessa noite tive insônia. Não porque eu tenha ficado impressionada com essa história de “novo México”. Afinal eu já estou acostumada com essas catástrofes. Estou antevendo é o que pode acontecer com você, meu filho, nesse “novo México”. E não me venha com aquela história de que está tudo bem, que isso é fofoca dos Sem o Que Fazer. Pode até ser que isto seja coisa dos Sem o Que Fazer ( tem tanta gente desempregada) mas que eles estão pensando em fazer alguma coisa, ah! isto estão!
Você pode até achar que crocodilos têm mais sensibilidade que seres humanos , mas isto é porque você nunca passou dificuldades na sua vida. Deixe um ser humano com 5 filhos sem emprego, sem nenhuma perspectiva que você vai ver o que é sensibilidade. Você pode experimentar deixar um crocodilo com fome também...talvez seja até menos perigoso.
Outra coisa: O cabo Pires está em greve. Estamos a mercê dos malfeitores! O Tião Mão Leve está fazendo uma canja por dia com as galinhas do Zé Garnizé, teve briga de faca no bar Santo Antão ontem a noite, a maior arruaça, você precisava ver! Graças a Deus a faca saiu do cabo e o Zé Taioba estava tão bêbado que nem deu por conta e espetou o Janjão Bate Boca com o toco mesmo. Deu só uma arranhadinha, mas o sujeito fez um escândalo tão grande que ninguém dormiu na cidade. A não ser o Cabo Pires, é claro. Este dorme em serviço, quanto mais em greve. O único preso que tem na cadeia é Tonho Pé de Cana e assim mesmo porque já está tão acostumado que, depois de encher a cara, vai direto e dorme lá, como sempre. Mas ele não precisa do Cabo Pires dar ordem de prisão. Zé Taioba e o Mão Leve são mais resistentes. Você bem podia dar um jeito de dobrar o salário do Cabo Pires, Fernando...tenho certeza de que não vai ser um rombo muito grande no orçamento do país e a gente fica mais segura. Podia também dar uma farda nova que a dele já está bem poidinha. Revolver não precisa, ele tem um bodoque muito bom.
Um beijo na Rutinha. Pense bem antes de falar bobagens, meu filho. Uma hora destas um tomate podre te acerta! Um beijo da sua mãe Sem Esperança, Filó.

Pé da Serra, 16 de abril de 1999
Fê, querido
Ando muito preocupada com você, meu filho. Soube que andou com uma gripe forte e, mesmo assim, continua com viagens marcadas para esses países frios. A Rutinha fez aquele chazinho de hortelã que eu ensinei? Tem que tomar bem quente, viu? Tia Cotinha está fazendo um cachecol de crochê para quando você descer do avião. Se ela achar a receita vai fazer um par de luvas combinando. Você sempre teve mãos tão geladas! Não tome friagem nem sorvete enquanto estiver assim. Cuidado com a pneumonia ( Deus me livre!).
Tia Cotinha vai operar a catarata, graças a Deus. Sabe aquele hospital que estavam construindo aqui, só para atender pelo INAMPS? Pois é. Ficou pronto. Deve lembrar. Você tinha uns sete anos quando começaram a construção. Disseram que era para melhorar o atendimento. Depois de oito meses e uma novena para S. Judas Tadeu, deram uma ficha para ela. Marcaram para as sete horas da segunda - feira passada. Chegamos lá às 5 e já tinha umas 20 pessoas na frente. Fiquei imaginando como esses médicos do INAMPS trabalham. Naturalmente tinha gente marcada até para o dia seguinte. Não era não. Todo mundo estava marcado para as sete horas, que nem a Cotinha! Deve ser uma consulta em grupo – pensei – já que as pessoas têm todas o mesmo problema. Também não era não. E isto eu só fui ficar sabendo duas semanas depois, sabe porque, Fé? Porque nesses dias e nos outros (Segunda, Terça, Quarta, Quinta e Sexta (Sábado não, porque só rico adoece nos sábados e domingos) o médico que ia atender às sete horas telefonou as onze dizendo que não poderia ir. Foi assim a semana inteira, Fernando, e você sabe que eu não minto. Tinha gente que levava marmita! Acabou que eu ganhei uma receita nova de biscoito de araruta, de uma senhora muito simpática, já quase cega. Em troca eu dei para ela a novena do Menino Jesus de Praga (poderosíssima). Quem sabe assim ela consegue uma vaga para opera a catarata? A atendente que ficava sentadinha a uma mesa muito rústica (aliás, tudo ali era muito rústico, para não dizer outra coisa), fazia crochê o tempo todo e, se alguém ousava perguntar pelo médico, ela ousava fingir que não ouvia. Na verdade parece que todo mundo que atende lá é surdo, ou de repente, todos nós ficamos invisíveis depois de transpor a porta do tal hospital. No final da semana a colcha que ela estava tecendo ficou prontinha (até bonita!) e às onze e meia, sem tirar os olhos do crochê, para não perder o ponto, ela falou a frase de todos os dias:
-O Dr. Crisóstemo não vem mais hoje. Voltem na Segunda.
Aí eu não agüentei, Fé. Você sabe que eu tenho muita paciência, que não sou dessas coisas, mas tinha gente ali que nem conseguia andar direito e tinha vindo a semana inteira para uma consulta esperada por mais de um ano. Tinha gente ali totalmente cega por não ter operado a catarata em tempo certo. Eu não agüentei!
- O que é isto afinal? – Berrei – Que falta de respeito é essa? Isto aqui é um hospital ou um campo de concentração? A porcaria deste médico não tem mãe? – Bem, Fernando, aí você pode imaginar o que aconteceu. Chamaram o segurança e eu e a Cotinha viemos para casa num carro da polícia (pelo menos poupamos o dinheiro do ônibus). No dia seguinte, telefonei para o sobrinho dela, o Igor, você conhece, (formou para engenheiro) contei a história. Ele vai pagar a operação dela. Já fez a consulta, já fez os exames, ta tudo bem. Na Quarta feira ela opera. O médico é uma gracinha! É o próprio Dr. Crisóstemo, só que agora, particular. Outra coisa! Vai ser lá mesmo, naquele hospital. Achei engraçado porque tinha vaga. Mas a senhora simpática que me deu a receita de biscoito de araruta até ontem não tinha sido atendida. Nem com a novena do Menino Jesus de Praga! Será que você não podia dar um jeito nisso, Fé? Ou quem sabe você pega uma ficha no INAMPS pra tratar dessa sua gripe? Você sendo Presidente pode ser mais fácil. Aí você faz uma tramóia e passa a ficha para essa senhora, coitadinha. Não precisa ter escrúpulos, porque é uma tramóia para o bem e o Menino Jesus de Praga vai entender.
Tia Cotinha manda um beijo. Da sua mãe, que ainda enxerga, graças a Deus, Filó.
Pé da Serra, junho de 2001.
Meu querido Itamarzinho.

Estou lhe escrevendo essas mal traçadas linhas em nome da nossa velha amizade e para pedir-lhe que não provoque mais o Fernando. Vocês sempre foram tão amiguinhos, sempre o tive como um filho, mesmo quando você disputava as bolinhas de gude com o Fernando, nunca deixei de lhe dar razão, mesmo porque eu precisava muito daquela receita de pão de queijo da senhora sua mãe e, você conhece aquele velho ditado: “para agradar a mãe, mime o filho”. O Fernando sempre foi muito econômico e essa pendenga de vocês vem desde meninos. Ele apagava a luz, você acendia. Fiquei meses tentando agradar aos dois, acendendo e apagando luzes até sofrermos aquele curto circuito que nos deixou no escuro por 24 horas. Pensei que aquela história estava encerrada. Agora vocês começam tudo de novo! Valha-me minha santa Edwiges! O Dô anda espalhando por aí que desta vez, você não tem nenhuma culpa, que está certíssimo, que esta história de fazer a gente pagar o pato que não comeu, é coisa do Fernando. Diz ele que, já que foi ameaçado de ter a luz cortada se usar além da medida que o governo lhe deu, não vai usar luz nenhuma. Está atendendo os fregueses com uma vela acesa, e fazendo as contas de quanto o Fernando terá de pagar-lhe por kw poupado. Do jeito que vai, acho que ele terá restituição de luz não usada. E tem muita gente fazendo amesma coissa, aqui em Pé da Serra. Se a gente tem 2,00 por cada 1,00 poupado além da quota estipulada, tem gente aqui que vai ficar rico. Espera um pouquinho que a vela apagou. Entrou um golpe de vento. No escuro é difícil achar os fósforos. Pronto. Onde foi que paramos? Ah! Em golpe de vento... pois é. Você sabe que eu nunca aprovei a amizade de Fernando com esse tal de FMI. Mas o Fernando tem uma mania de grandeza! Ele adora esses amigos ricos, mas rico só faz amizade com pobre para explora-lo e deu no que deu.( Apagou de novo. Esse golpe de vento. Espera um pouco). Pronto. Onde foi que paramos. Sim, golpe de vento... pois é. Uma coisa me intriga, Itamarzinho: como é que as fornecedoras de energia vão continuar com o lucro que tinham antes das medidas? Com os 16% de aumento das tarifas exatamente antes do racionamento? Ou seria com a sobretaxa para os consumidores impertinentes? Pelo visto ( minha vela continua acesa, portanto ainda vejo alguma coisa) as fornecedoras não teriam prejuízo nenhum com essa história, muito pelo contrário. A gente pagaria mais, usando menos e assim as coitadinhas das Eletropaulo, Cemig e Liht, continuariam com os lucros de vento em popa. Suspeito que, ( é só uma suspeita) estão nos fazendo de idiotas com esses discursos cívicos. (Olha o golpe de vento de novo! Tremulou mas não apagou). Continuando, estou me sentindo meio confusa com essa história. Não investiram nas energias porque o amigo rico do Fernando não deixou, pois já que iam privatizar...mas, me diga: quem vai comprar uma fornecedora de energia que não tem energia para vender?! O Fernando me garantiu que não sabia de nada, que foi um golpe para ele, saber das condições energéticas do País. Se ele, que é o presidente do Brasil, não sabia, porque é que nós vamos pagar as contas de sua irresponsabilidade? É como se eu tivesse uma caixa d’água aqui em casa sempre cheia e fosse gastando, gastando, por meses a fio, e a caixa adquirisse alguns vazamentos, e eu, preocupada em ir aos Shoppings e festas, nem notasse. Eu não teria sido uma tresloucada? E, ainda mais, se eu tivesse pagando um sujeito só para ficar de olho na caixa d’água. Porque o Fernando tem um ministro das Minas e Energias, não tem? Ora, cá pra nós, Itamarzinho! Se eu chegasse diante da minha família e dissesse: - Gente, sinto muito. A água acabou. Fiquei sabendo disso agora.” No mínimo o pessoal me esquartejaria ou me poria para fora de casa aos pontapés. Fernando tem que agradecer muito aos céus a paciência infinita deste povo que ele diz que governa. E você, Itamar, dê um pulinho aqui em Pé da Serra que eu quero lhe apresentar o Dô da farmácia. Você vai gostar muito dele e, juntos, quem sabe, vocês convençam o Fernando que nós não somo todos senis, neste país. Mas com jeito, sem brigas, porque não sou dessas coisas, você me conhece. Vou ficar por aqui. A vela está por um fio. Um abraço apertado da Filó.
PS: Pode me dar aquela receita de pão de queijo?







Pé da Serra, Maio de 1998
Querido Fernando:
Estou desolada. Triste. Sei como você está se sentindo. Logo o Serjão. Logo agora. Tão bom menino o Serjão. Tão católico! Meio respondão, que não é só porque ele morreu que vou desculpar seus defeitos. Levou muito tapa na boca e não aprendeu. Mas tão amigo, né Fê! Desde o tempo da AP, se é que você se lembra daqueles tempos. As vezes eu acho que seu pior defeito é a memória. Desde os tempos da AP ele mandava e desmandava com aquele topete todo, até diziam que era comunista mas nunca acreditei. Deus me livre. E depois o Luiz Eduardo, um moço tão bonito! Tô achando que isso é praga do Dô, mas pegue com S. Judas Tadeu que não vai ter olho gordo que te tire a presidencia. Falar nisso, como vai a pressão? Tem tido aquelas taquicardias? Parou de fumar? Depois da morte do Luiz Eduardo a fila do Inamps cresceu que só vendo. Qualquer dorzinha de ar preso e todo mundo pensa que é infarto. Sua carteirinha tá em dia? Não se descuide, meu filho.
Estão dizendo que agora sem o Sérgio você vai ter que trabalhar dobrado e eu fico meio apreensiva. Bom é que tendo que trabalhar um pouco mais, você deixa de viajar e finca um pouco o pé no Brasil e, quem sabe, lê alguns jornais. Aí você fica mais inteirado do que está acontecendo por aqui, que você não sabe nem da metade das mazelas pelas quais passa esse povo. Ultimamente você tem se mostrado muito convencido da sua superioridade como ser humano. E isso me deixa agastada. Não foi essa a educação que eu te dei Fernando. Ficar aí posando de culto e refinado, diante de um povo que nem vaga nas escolas primárias tem, pega muito mal e é até falta de educação, senão de caridade. Chamar quem se opõe às suas burrices de neobobo é o cúmulo da pretenção. Bobagem maior disse aquele seu Ministro do Trabalho, o Amadeo! Meu Deus do céu! Imagino que até você ficou vermelho ao ouvir aquela bestagem de que não existe desemprego no Brasil. Os 15 milhões de desempregados podiam parar na frente da casa dele e exigir que o Amadeo lhes diga cadê os empregos que ele garante que existem. E mais: no caso de não dar o endereço dos empregos, cada desempregado devia dar um cocão por conta. No Amadeo e em você que é para aprender a nomear ministro. Onde já se viu? Primeiro, um Ministro da Saúde que nunca tinha visto um mosquito na vida e que, por cima, tem umas olheiras maiores do que as do seu tio Zé Muquifo. Isso é lá cara de Ministro da Saúde? Pode ser Ministro da Doença. Agora, um Ministro do Trabalho que garante que o Brasil não está sofrendo com o maior desemprego dos últimos tempos. Tenho a impressão que com essa sua mania de grandeza você deve ter escolhido esse ministro em sua viagem pela Europa, lá na Suissa. E que o Amadeus nunca passou os olhos pelo Brasil, aliás, até evita olhar, porque não pode com essas coisas. É a mesma coisa de alguém morrer de medo de sangue e ser médico cirurgião. Que diabo! O que acontece com vocês aí em cima? Sofrem de algum tipo de doença que os incapacitam de ver misérias? Dá torcicolo virar o pescoço um pouquinho em direção ao povo? Manda esse Amadeus de araque vir aqui em Pé da Serra, manda! Manda ele vir até a farmácia do Dô ou na Venda do Tião e ficar um dia inteiro lá. Fala com ele pra sentar num saco de batatas na porta da venda e puxar conversa com o povo. Mas explica pra ele o que é povo, que não deve ter a mínima idéia! Será que pra ser ministro não é preciso saber do que está acontecendo? Ou será que é prescindível? Bobagem, né Fernado? Bobagem um Ministro entender do seu ministério: não vai mudar nada mesmo! Já que é assim você bem podia nomear o seu primo Carlão Pé de Briga pra ministro do Exterior. Tem oito meses que ele está num desses empregos que o Amadeus falou que existem, que ninguem vê, sabe o enderêço ou recebe o pagamento. O coitado já tá pegando restos no sacolão para alimentar a família. Isso se chegar bem cedo, porque a fila lá é enorme. Por incrível que possa parecer ao seu ministro, tem um monte de gente na mesma situação.
Não é sempre que você faz bestagem. Tem vez que você faz cada uma que parece duas! Esse aumento do salário mínimo está me deixando preocupada. Você tem certeza de que não está sendo muito perdulário, Fê? O consumo não vai disparar? As indústrias vão aguentar? E o povo? Vai parar de rir? Não é muito? Você tem certeza? Sei não... se pensar que a inflação está intimamente ligada ao salário que se paga neste país ( pelo menos é isso que nos faz crer) e que o povo brasileiro não pode ter um dinheirinho extra na bolsa que dispara numa compração desesperada, com um salário mínimo de cento e trinta reais, tem gente que vai achar que ficou rico. Sei não, Fernando, você poderia ter dividido este aumento todo em 10 parcelas iguais para que o pobre coitado ( ou o coitado do pobre) não enlouquecesse de euforia com tanto dinheiro de uma vez só.. E pagaria os juros que o banco cobra. Que tal? Não quero ser pessimista, longe de mim, mas não vejo nenhuma luz no final do túnel, você vê? Devem ser meus óculos que estão vencidos. Não tire a fita preta do paletó antes de um ano pelo menos.E lembre-se das últimas palavras do Sérrgio, Fernandinho. Um beijo da sua mãe nova rica com o tal aumento, Filó.




Pé da Serra, 16 de maio de 1998.

Fernando, meu filho.

Nem um telefonemazinho no dia das mães! Nem uma rosa, nada! Até parece que você não tem mãe, Fernando. Aliás, é o que todo mundo está falando por aqui. Que mãe você não tem. Fico revoltada! Mãe você tem sim, e estou aqui para provar. Você pode não ter outras coisas, mas mãe você tem sim senhor! O que é que você foi fazer no nordeste, que até agora não entendi? Passou seu filtro solar? Que pra agüentar aquele sol na testa é preciso filtro ou um chapéu de cangaceiro. Como você não suporta chapéu, espero que tenha se cuidado o suficiente. Fiquei muito preocupada, meu filho, pensando na sua alimentação lá no nordeste. Você não gosta muito de rapadura com farinha e pelo que me consta nem isto tá sobrando lá. Comeu girimum? Gostou? Não gosto muito, mas a Cotinha faz um girimum com carne seca que dá água na boca. Só que engorda muito. Ainda bem que você foi educado e não ficou muito tempo. Aquela gente já não tem o que comer, vai que você fica mais tempo e como você, como a maioria ainda tem o hábito de comer, ia acabar com o resto de rapadura deles. Até aí tudo muito bem, mas que você vá à casa dos outros, encontra as panelas vazias e diga que não está faltando comida, é de amargar. Numa coisa você tem razão; comida há. Haja visto que eles estão encontrando. De uma maneira meio trabalhosa mas estão. Com a educação que eu te dei é certo que você não aprove a falta de boas maneiras desses nordestinos, meu filho. É realmente triste que eles nem saibam usar os talheres. Você devia ter aproveitado para ensinar-lhes a usar o garfo e faca de maneira elegante como convém aos habitantes de um país moderno prestes a entrar no 1º mundo, com pompa e circunstância. Pena que eles vão entrar neste fantástico mundo com fome, mas isto não tem importância. Desde que saibam usar os talheres com graça de parisienses, o resto é só detalhe; embora no fundo no fundo, eu continue achando que garfo é a coisa mais inútil quando se tem fome. Igualzinho a diplomas de sociólogos que se tornam presidentes: a gente tece caraminholas para entender porque e não consegue. Mas educação é uma coisa séria, né Fernando, e nunca é demais. Comida de menos, mas com muita etiqueta, que aliás é até chique fazer um regimezinho; que o diga a Rutinha.
Que você negue as evidências da fome e diga que não falta comida no nordeste, posso entender ( mãe entende quase tudo!). Mas que você revele em público a pouca assepsia da política como se fosse a coisa mais natural do mundo, minha Nossa Senhora do Pilar! Deu agora para se confessar em público, Fernando? Certas coisas só se dizem ao pé do padre, sob segredo de confissão, meu filho. Fiquei sem sair de casa uns dois dias seguidos, morta de vergonha. Mesmo assim, gostaria de saber mais detalhes desta pouca assepsia. Você me conta?
A venda do Tião Macaco fechou, Fê! Você se lembra dos seus tempo de menino? Era lá que você comprava bala com o resultado das contas de chegar que você fazia, seu bandidinho! Você perdeu esse mau hábito, não é Fernando? Sabe o apelido que o Dô da Farmácia deu para o plano Real? Latinha. Lá tinha uma empresa, lá tinha uma padaria, lá tinha uma fábrica...pois é. E agora lá tinha a venda do Tião Macaco, coitado. Ele estava pensando em ir pro Nordeste, abrir uma venda lá de rapadura e farinha, já que o sul não promete. Tirei ele de cabeça, que você já tinha estado lá, e que, apesar de ter muita comida, faltava trabalho. Ele me respondeu que pelo menos você garantia que tinha comida lá, que aqui nem uma coisa nem outra. Ele resolveu ficar e rezar. Você disse que funciona e eu também acho. Uma coisa me estranha: você conhece alguma reza brava? Porque as comuns, sei não...
Tem ido à missa? Comungou? Não deixe de cumprir nenhuma promessa, que o povo esquece, mas os santos não. Um beijo da sua mãe, Filó.


















Pé da Serra, Outubro de 1998.

Lu, meu filho!

A Cotinha teve uma crise de apendicite! Mas não se preocupe que já está tudo bem, graças a S. Judas, Santo Inácio de Paula. Santa Edwiges, e à santa Inhá Lica , que se não fosse por ela, a essas alturas a Cotinha tinha partido desta para a melhor. Eu tenho que te contar a tragédia que abalou nossas vidinhas tranquilas por causa de uma crise de apendicite da Cotinha, porque senão você nunca vai saber , de fato, o poder que tem S. Judas e todos os santos que citei aí em cima, sem falar da Inhá Lica. Essa, o João Paulo tem que canonizar! Fomos parar no Hospital Santa Mãe de Deus que achei ser mais conveniente por não se tratar de acidente com fratura exposta ( porque, dizem, no outro hospital só atendem casos desta natureza escabrosa). Era um sábado à noite e não tinha muito movimento na dita casa de saúde. Na verdade não tinha movimento nenhum, porque nem o médico que devia estar de plantão não estava. Além disso, a atendente, até muito simpática, nos disse que mesmo que o médico já tivesse chegado, não iria adiantar muito, porque lá não tinha remédios, leitos, anestesista e tudo o mais que faz de um hospital um hospital. Diante disso, deixamos uns trocados para a atendente tomar um lanche que parecia que ela iria desmaiar a qualquer momento ( a cozinha estava desativada) e partimos para o Odibom Beris, com as pernas trêmulas de pavor, que a gente tinha notícias muito vagas do que tem acontecido por lá. Mas fomos. Que remédio? Ah, Lula! Antes tivesse levado a Cotinha pro centro de Inhá Lica! O que passamos ali, nem Sísifo, nem Ulisses, em todas as suas batalhas, sofreram mais! Pra entrar a gente entra até rápido ( deve ser para desocupar a portaria) e, depois de duas horas, a Cotinha já estava numa maca no meio do corredor tomando soro, (parece que soro lá não falta, tinha mais uns vinte tomando, engraçado é que tinha gente que nem respirava mais tomando soro) e mais duas horas depois veio um senhor de branco, bonitão, e disse que estava suspeitando que a Cotinha tivesse: ou uma crise de apendicite, ou uma gravidez tubária. Aí eu suspeitei da saúde mental do dito cujo, porque, que eu saiba, a Cotinha pode estar muito conservada, mas ela tem OITENTA E SETE ANOS!! E é virgem! Pelo menos me fez acreditar nisso durante estes 87 anos. Passei um rabo de olho desconfiado para a Cotinha. Eram já 2 horas da madrugada quando o médico voltou. Olhou pra sua tia e perguntou como era a vida sexual dela. Suspeitei ter visto um leve rubor nas faces pálidas da Cotinha, que não respondeu. Acho que ela nem sabe o que é vida sexual. Bem, tiradas as dúvidas quanto a uma possível gravidez fora do útero, fizeram uma radiografia não sei de onde, cujo resultado só apareceu às cinco horas da manhã. E que não serviu para nada, pelo visto, porque o médico disse que não poderia concluir nada daquela radiografia. Porque fizeram então o Raio X? É uma pergunta que me fiz e que não tive coragem de fazer ao senhor de branco, porque achei que poderia ofendê-lo, e eu não sou dessas coisas, você sabe. Aí decidiram fazer uma ultra-sonografia que também não serviu para nada, porque a Cotinha estava sem comer há 14 horas e sem beber um gole d’água sequer, pois estava sendo preparada para uma possível cirurgia. Até eu sei que uma ultra-sonografia precisa de contraste ( ou seja, a Cotinha teria que ter tomado pelo menos uns 8 copos d’água antes de fazê-la) mas parece que lá no Odibom Beris ninguém sabia disso! Logo, a ultra-sonografia também não serviu para nada. Enquanto isso, a Cotinha dormia comodamente instalada numa maca no meio do corredor e eu ficava sentada num banco de madeira junto com um punhado de gente na mesma situação. Uma mulher de branco ia e vinha a noite inteira, colhendo sangue das pessoas nas macas, e o médico com olheiras maiores do que as do Frankstein, fazia o que podia, e olhava o relógio de cinco em cinco minutos depois das 6 horas. O plantão dele terminava às sete. Apesar de ter duvidado da honra da Cotinha tive muita pena quando o vi sair afobado e suado. Mesmo assim corri atrás dele para perguntar o que seria feito dela. Ele disse que não sabia ainda, mas que o próximo residente me diria. Ou então que no próximo plantão ele já teria alguma coisa definida. Aí eu apelei, Lula! Não sei se por ter passado uma noite sem dormir, não sei se por estar ali vendo aquele monte de fratura exposta e ouvindo os urros de dor, não sei. Só sei que parti para a ignorância! Agarrei a maca da Cotinha e saí em debandada pelo corredor. Quase atropelei um senhor que andava pra lá e pra cá com uns olhos de louco, e saí porta à fora aos berros. De lá pra cá não em lembro muito bem do que aconteceu. Quando dei por mim, Inhá Lica estava ajoelhada fazendo uns salamaleques, e se você me perguntar como fomos parar lá, eu não sei dizer. Fiz trinta e duas novenas pra S. Judas, 24 para Santa Edwiges e uma promessa pro Santo Inácio. À noite desse mesmo dia a Cotinha já estava toda fagueira, sem dor nem nada. Agora só falta eu cumprir a promessa que fiz ao santo Inácio. Vai dar um pouco de trabalho, mas garanto que será menos sofrido do que ter que ir ao Odibom Beris. O que é que prometi a ele? Prometi ir até Brasília na garupa do Beto Corisco ( aquele da moto que atropelou o Zé Trovão) e te dar um cocão ( um só não, uns duzentos) que é para você aprender a respeitar sua Tia Cotinha e mais uns milhões de brasileiros! Seu...seu...seu!
Sem mais, com profundo pesar, sua mãe,
Filó.



Pé da Serra, 15 de Maio de 1999
Fernando, meu filho,
Como sempre, nem um bilhetinho no dia das mães, nem um fax, um e-mail, nada. Dizem que não, mas você ainda tem mãe, Fernando Henrique.
Fui tomar a vacina que vocês aí inventaram para nós, da terceira idade. Só eu, aqui em Pé da Serra, fui vacinada. Nem a Cotinha se atreveu, imagine! O Dô, aquele crápula, espalhou para todo mundo que esta vacina é o golpe de minsericórdia. Que isto não é vacina coisa nenhuma, que é um coquetel assassino para acabar de vez com os aposentados e os velhos em geral, que assim vocês ficam livres de uma população que só dá despesa e trabalho. Tem lógica. Como sou sua mãe, resolvi correr o risco e dar o exemplo. Juntou uma comissão aqui em frente de casa, dia e noite e estou em observação. Ao menor espirro, correm todos para ver se ainda estou viva. A Cotinha olha a minha língua de cinco em cinco minutos e, ontem, chamou a ambulância porque achou que eu estava ficando meio azulada. Ainda bem que a ambulância não veio, como sempre. Para fazer sair tinta da caneta, eu soprei o canudinho e sujei a boca de tinta azul. Foi só lavar e pronto. Mas passei uma magrela. Aquele povo todo acampado em frente de casa entrou, me fez deitar, enquanto uns abanavam, outros massageavam os meus pulsos, enquanto o Dô gritava palavrões mesclados com “eu não disse?” Quase dei um treco mesmo. Tive uma comichão na sola do pé e a comitiva da observação jurou que já se tratava de efeito da vacina. Mas era só um bicho de pé. Mesmo assim, ninguém se dispõe a correr o risco. Dizem que pode ter um efeito retardado, quando todo mundo já tiver esquecido que tomou a vacina, os velhos vão tombando, como laranjas podres. Assim, ninguém vai desconfiar. Seja lá o que Deus quiser. Já tomei mesmo.
Outra coisa, Fê, você não acha que este aumento do salário mínimo vai desencadear uma disparada na inflação? Acho meio perigoso, já que todo mundo sabe que não são os juros altos, o dolar e coisa tal que são perigosos para a nossa economia. Colocar 136 mil réis na mão desses perdulários pode afetar drasticamente a economia do país. Vai que eles disparem a comprar feito uns doidos, porque ninguém consegue segurar gente que tenha 136 reais no bolso! Sei não...

Também não sei de que vai servir uma vacina contra gripe ( se for mesmo) se a gente não encontra nos postos nem mesmo um mercúrio cromo. Tem criança aqui morrendo de tuberculose porque não tem antibiótico nos postos.
Tem cada médico engraçado neste SUS, Fernando, que se não fosse trágico, eu iria morrer de rir. Outro dia, um coitado apareceu na farmácia do Dô com uma receita. Eram três remédios ( que também não existiam no posto). O dono da receita teve que ser medicado quando viu o preço dos tais remédios: três mil reais! O coitado é aposentado. Como é que esse médico não se envergonha de receitar uma coisa que custa 2 anos de aposentadoria de uma pessoa? Eu vi na televisão outro dia que foram queimados toneladas de remédios que seriam suficientes para suprir todos os SUS do Estado, porque perderam a validade! Que diabo é isto, Fernando Henrique? Enquanto o câmera focalizava eu vi com estes olhos que a terra não há de comer, milhares de caixas de Combirom, o remédio que seu primo Braulio foi procurar na farmácia do Posto e que disseram que estava em falta. Enquanto o Combirom mofava no depósito seu primo amarelava de anemia. Quem você pensa que o povo é? Todo esse salamaleque com economistas alemães e do raio que o parta, toda esta preocupação com a bolsa, todo esta preocupação com Bancos falidos, e o povo, este que ingenuamente te colocou no poder, morrendo por falta de remédios, de médicos e sobretudo de respeito. Que diabo de país é este? Isto sim, é uma chacina digna de Hitler. E sem Nuremberg, o que é pior. Sabe de uma coisa, Sr. Fernando Henrique? Quem não tem competência que não se estabeleça. Acho que foi você mesmo que disse isto certa feita.
Vou parar por aqui. Não estou me sentindo muito bem... uma coceira no sovaco. Pode ser a tal vacina. Vou avisar para a comitiva de observação.
Tem ido à missa? Um beijo da sua mãe, vacinada, Filó.

Pé da serra, 20 de agosto de 1998.
Ô Fernando!...
O que é mega campanha? Tem a ver com Mega Sena? Com Megalomania? É a mesma coisa, Fê? Lí no jornal que você está fazendo uma mega campanha e não sei bem o que quer dizer isso. Procurei no Aurélio e encontrei um monte de "megas". Megalítico. Megafone (isso eu sei o que é).Megalópteros. Meganha ( esse também eu sei bem o que é) , mas depois de"megaton" pulou pra "megera". Mega campanha não tem. Foi você quem inventou, Fernando? Ou então, o meu Aurélio está desatualizado. Bem, seja lá o que for, só espero que não me venha com novas bestagens.
Que beleza, hem Fê, as pesquisas do Ibope! Sou doida para dar a minha opinião numa pesquisa dessas, mas parece que meu tipo não serve. Desde que me entendo por gente - e olhe que lá se vai uma eternidade - que fico esperando um pesquisador. Custou uns 50 anos, aí apareceu um aqui em casa. Fiquei toda animada, até ofereci café com rosquinhas de aipim pro infeliz. Aí ele me perguntou todo sorridente:
- Tem alguém do sexo feminino com mais de 40 e menos de cinqüenta anos em casa?
Quase menti a idade, até diminuí um pouquinho, disse que tinha alguém do sexo feminino com 58. Ele disse "não serve" e saiu em disparada sem nem agradecer o café, o idiota! Aí veio outro. Desta vez vai - pensei - nem que eu tenha que inventar que sofro de uma doença degenerativa e que tenho mesmo 40 anos.
-Tem alguém com mais de 50 e menos de sessenta anos em casa?
-Eu! -Respondi toda fagueira e cor- de -rosa de vergonha da mentira. O sujeito se empolgou, tomou um chá de erva- cidreira que eu tinha feito pra Cotinha, e começou a perguntar:
- Qual a renda familiar?
Um pouco envergonhada, ainda menti um pouquinho e aumentei:
- 400,00 ...
- Não serve. Tem que ter renda familiar acima de 500 e menos de 1.200,00.
E disparou atrás de alguém que estivesse dentro desses requisitos. Fiquei uma arara! Não tenho renda suficiente nem para responder a uma pesquisa! A não ser o prefeito, duvido que ele encontre aqui alguém que ganhe mais de 400,00.
Já está marcada a data para a crucificação final do comunistazinho? Engraçado, né Fê, como é a vida: o coitado tá passando a maior vergonha e tem a vida devassada por causa de um cheque de R$10,000,00! Enquanto os outros falam e são falados por milhões de dólares, o comunistazinho é crucificado por causa de uns míseros reais. Bem se vê que ele é pobre mesmo. Por falar nisso, já pagou os juros da sua dívida, com o dinheiro das Teles? Não vá fintar seus credores, meu filho. Você disse que alguma coisa desse dinheiro iria para o social, mas não acho que convém. Mesmo porque, até que algum dinheiro chegue ao seu destino neste país, já atravessou tantos desvios, que acaba por virar uma merreca insignificante quando chega, e se chega. É melhor mesmo que você passe o cheque para os credores, porque esse caminho, tenho certeza, é em linha reta e você não leva prejuízo. Pelo menos você fica sabendo para onde foi o dinheiro suado da venda das Teles. Suado pelos brasileiros que trabalharam nelas anos a fio, e não por você que bateu o martelo, se foi isso que pensou. E que suor amargo! Bem, o que está feito não está por fazer. Chega de lamentações. Estou louca pra te ver no Horário Eleitoral Gratuito, Fê! Coloque aquele jaquetão azul marinho que o Seu Nô Linhadura fez de encomenda. Se não me engano, foi feito para a posse daquele bigodudo, como é mesmo o nome dele?... Aquele dos planos econômico... ( que saudades!) Peça à Rutinha para dar uma escovada nos seus sapatos para tirar a poeira do nordeste. Tem pago o INSS direitinho? Você pode precisar se consultar e o pessoal
( pelo menos aqui) está exigindo comprovante. Tem ido à missa?
Saudades da sua mãe privatizada,
Filó.

Pé da Serra, 15 de Maio de 1999
Fernando, meu filho,
Fui tomar a vacina que vocês aí inventaram para nós, da terceira idade. Só eu, aqui em Pé da Serra, fui vacinada. Nem a Cotinha se atreveu, imagine! O Dô, aquele crápula, espalhou para todo mundo que esta vacina é o golpe de misericórdia. Que isto não é vacina coisa nenhuma, que é um coquetel assassino para acabar de vez com os aposentados e os velhos em geral, que assim vocês ficam livres de uma população que só dá despesa e trabalho. Tem lógica. Como sou sua mãe, resolvi correr o risco e dar o exemplo. Juntou uma comissão aqui em frente de casa, dia e noite e estou em observação. Ao menor espirro, correm todos para ver se ainda estou viva. A Cotinha olha a minha língua de cinco em cinco minutos e, ontem, chamou a ambulância porque achou que eu estava ficando meio azulada. Ainda bem que a ambulância não veio, como sempre. Para fazer sair tinta da caneta, eu soprei o canudinho e sujei a boca de tinta azul. Foi só lavar e pronto. Mas passei uma magrela. Aquele povo todo acampado em frente de casa entrou, me fez deitar, enquanto uns abanavam, outros massageavam os meus pulsos, enquanto o Dô gritava palavrões mesclados com “eu não disse?” Quase dei um treco mesmo. Tive uma comichão na sola do pé e a comitiva da observação jurou que já se tratava de efeito da vacina. Mas era só um bicho de pé. Mesmo assim, ninguém se dispõe a correr o risco. Dizem que pode ter um efeito retardado, quando todo mundo já tiver esquecido que tomou a vacina, os velhos vão tombando, como laranjas podres. Assim, ninguém vai desconfiar. Seja lá o que Deus quiser. Já tomei mesmo.
A Cotinha está organizando aqui a Jornada dos Excluídos. Ela não sabe bem excluídos do que e está pensando que são aquelas pessoas que a atendente do Inamps bate com a portinhola na cara, depois de dois dias na fila. Tentei explicar que aqueles ainda podem voltar no dia seguinte e que, portanto, não são excluídos, mas ela - você conhece a peça - não quer nem saber onde bate o sino: quer é acompanhar a procissão! Pode ser que você receba aí no palácio um bando de gente com a carteirinha do Inamps na mão provando que é contribuinte e que merece respeito. Se é que eles vão aguentar a jornada. São tão perrengues, tadinhos! Fala pra Rutinha servir umas rosquinhas de nata pra eles, pelo menos. Tenho certeza de que não vai fazer falta.
Vou parar por aqui. Não estou me sentindo muito bem... uma coceira no sovaco. Pode ser a tal vacina. Vou avisar para a comitiva de observação.
Deus te abençoe e te perdoe.Tem ido à missa?
Um beijo da sua mãe, vacinada, Filó.




Pé da Serra, março de 2004.

Lula, meu filho!

A Cotinha teve uma crise de apendicite! Mas não se preocupe que já está tudo bem, graças à S. Judas, Santo Inácio de Paula. Santa Edwiges, e à santa Inha Lica , que se não fosse por ela, a essas alturas a Cotinha tinha partido desta para a melhor. Eu tenho que te contar a tragédia que abalou nossas vidinhas tranqüilas por causa de uma crise de apendicite da Cotinha, porque senão você nunca vai saber , de fato, o poder que tem S. Judas e todos os santos que citei aí em cima, sem falar da Inha Lica. Essa, O João Paulo tem que canonizar! Fomos parar no Hospital Santa Mãe de Deus que achei ser mais conveniente por não se tratar de acidente com fratura exposta ( porque, dizem, no outro hospital só atendem casos desta natureza escabrosa). Era um Sábado à noite e não tinha muito movimento na dita casa de saúde. Na verdade não tinha movimento nenhum, porque nem o médico que devia estar de plantão não estava. Além disso, a atendente até muito simpática, nos disse que mesmo que o médico já tivesse chegado, não ia adiantar muito, porque lá não tinha remédios, leitos, anestesista e tudo o mais que fazem de um hospital um hospital. Diante disso, deixamos uns trocados para a atendente tomar um lanche que parecia que ela iria desmaiar a qualquer momento ( a cozinha estava desativada) e partimos para o Odibom Beris, com as pernas trêmulas de pavor, que a gente tinha notícias muito vagas do que tem acontecido por lá. Mas fomos. Que remédio? Ah Lu! Antes tivesse levado a Cotinha pro centro de Inha Lica! O que passamos ali, nem Sísifo, nem Ulissess em todas as suas batalhas sofreram mais! Pra entrar a gente entra até rápido ( deve ser para desocupar a portaria) e, depois de duas horas a Cotinha já estava numa maca no meio do corredor tomando soro. ( parece que soro lá não falta, tinha mais uns vinte tomando soro, engraçado é que tinha gente que nem respirava mais tomando soro) e mais duas horas depois veio um senhor de branco, bonitão, e disse que estava suspeitando que a Cotinha tivesse: ou uma crise de apendicite, ou uma gravidez tubária. Aí eu suspeitei da saúde mental do dito cujo, porque, que eu saiba, a Cotinha pode estar muito conservada, mas ela tem OITENTA E SETE ANOS!! E é virgem! Pelo menos me fez acreditar nisso durante estes 87 anos. Passei um rabo de olho desconfiado para a Cotinha. Eram já 2 horas da madrugada quando o médico voltou. Olhou pra sua tia e perguntou como era a vida sexual dela. Suspeitei ter visto um leve rubor nas faces pálidas da Cotinha que não respondeu. Acho que ela nem sabe o que é vida sexual. Bem, tiradas as dúvidas quanto a uma possível gravidez fora do útero, tiraram uma radiografia não sei de onde, cujo resultado só apareceu as cinco horas da manhã. E que não serviu para nada, pelo visto, porque o médico disse que não poderia concluir nada daquela radiografia. Porque fizeram então o Raio X? É uma pergunta que me fiz e quem não tive coragem de fazer ao senhor de branco, porque achei que poderia ofendê-lo, e eu não sou dessas coisas, você sabe. Aí decidiram fazer uma Ultra sonografia que também não serviu para nada, porque a Cotinha estava sem comer há 14 horas e sem beber um gole d’água sequer, pois estava sendo preparada para uma possível cirurgia. Até eu sei que uma sonografia precisa de contraste ( ou seja, a Cotinha teria que ter tomado pelo menos uns 8 copos d’água antes de fazê-la) mas parece que lá no Odibom Beris ninguém sabia disso! Logo a Ultrasonografia também não serviu para nada. Enquanto isso, a Cotinha dormia comodamente instalada numa maca no meio do corredor e eu ficava sentada num banco de madeira junto com um punhado de gente na mesma situação. Uma mulher de branco ia e vinha a noite inteira colhendo sangue das pessoas nas macas e o médico com olheiras maiores do que as do Frankstein fazia o que podia e olhava o relógio de cinco em cinco minutos depois das 6 horas. O plantão dele terminava as sete. Apesar de ter duvidado da honra da Cotinha tive muita pena quando o vi sair afobado e suado. Mesmo assim corri atrás dele para perguntar o que seria feito dela. Ele disse que não sabia ainda, mas que o próximo residente me diria. Ou então que no próximo plantão ele já teria alguma coisa definida. Aí eu apelei, Lula! Não sei se por ter passado uma noite sem dormir, não sei se por estar ali vendo aquele monte de fratura exposta e ouvindo os urros de dor, não sei. Só sei que parti para a ignorância! Agarrei a maca da Cotinha e saí em debandada pelo corredor, quase atropelai um senhor que andava pra lá e pra cá com uns olhos de louco, E saí porta à fora aos berros. De lá pra cá não em lembro muito bem do que aconteceu. Sei que vi Inha Lica ajoelhada fazendo uns salamaleques, eu fiz trinta e duas novenas pra S. Judas, 24 para Santa Edwiges e uma promessa pro S. Inácio. À noite desse mesmo dia a Cotinha já estava toda fagueira, sem dor nem nada. Agora só falta eu cumprir a promessa que fiz ao santo Inácio. Vai dar um pouco de trabalho, mas garanto que será menos sofrido que ter que ir ao Odibom Beris. O que é que prometi a ele? Prometi ir até Brasília na garupa do Beto Corisco ( aquele da moto que atropelou o Zé Trovão) e e te dar um cocão ( um só não, uns duzentos) que é para vc aprender a respeitar sua Tia Cotinha e mais uns milhões de brasileiros! Seu...seu...seu!
Sem mais, com profundo pesar, sua mãe,
Filó.

Pé da Serra, 15 de Maio de 1999
Fernando, meu filho,
Fui tomar a vacina que vocês aí inventaram para nós, da terceira idade. Só eu, aqui em Pé da Serra, fui vacinada. Nem a Cotinha se atreveu, imagine! O Dô, aquele crápula, espalhou para todo mundo que esta vacina é o golpe de misericórdia. Que isto não é vacina coisa nenhuma, que é um coquetel assassino para acabar de vez com os aposentados e os velhos em geral, que assim vocês ficam livres de uma população que só dá despesa e trabalho. Tem lógica. Como sou sua mãe, resolvi correr o risco e dar o exemplo. Juntou uma comissão aqui em frente de casa, dia e noite e estou em observação. Ao menor espirro, correm todos para ver se ainda estou viva. A Cotinha olha a minha língua de cinco em cinco minutos e, ontem, chamou a ambulância porque achou que eu estava ficando meio azulada. Ainda bem que a ambulância não veio, como sempre. Para fazer sair tinta da caneta, eu soprei o canudinho e sujei a boca de tinta azul. Foi só lavar e pronto. Mas passei uma magrela. Aquele povo todo acampado em frente de casa entrou, me fez deitar, enquanto uns abanavam, outros massageavam os meus pulsos, enquanto o Dô gritava palavrões mesclados com “eu não disse?” Quase dei um treco mesmo. Tive uma comichão na sola do pé e a comitiva da observação jurou que já se tratava de efeito da vacina. Mas era só um bicho de pé. Mesmo assim, ninguém se dispõe a correr o risco. Dizem que pode ter um efeito retardado, quando todo mundo já tiver esquecido que tomou a vacina, os velhos vão tombando, como laranjas podres. Assim, ninguém vai desconfiar. Seja lá o que Deus quiser. Já tomei mesmo.
A Cotinha está organizando aqui a Jornada dos Excluídos. Ela não sabe bem excluídos do que e está pensando que são aquelas pessoas que a atendente do Inamps bate com a portinhola na cara, depois de dois dias na fila. Tentei explicar que aqueles ainda podem voltar no dia seguinte e que, portanto, não são excluídos, mas ela - você conhece a peça - não quer nem saber onde bate o sino: quer é acompanhar a procissão! Pode ser que você receba aí no palácio um bando de gente com a carteirinha do Inamps na mão provando que é contribuinte e que merece respeito. Se é que eles vão aguentar a jornada. São tão perrengues, tadinhos! Fala pra Rutinha servir umas rosquinhas de nata pra eles, pelo menos. Tenho certeza de que não vai fazer falta.
Vou parar por aqui. Não estou me sentindo muito bem... uma coceira no sovaco. Pode ser a tal vacina. Vou avisar para a comitiva de observação.
Deus te abençoe e te perdoe.Tem ido à missa?
Um beijo da sua mãe, vacinada, Filó.


Pé da Serra, Fevereiro de 1998.

Ôi Fê!

Eu bem que te avisei! Cansei de te falar que esse seu amigo Bill não era boa companhia. Mas você deu pra teimar comigo e ficou aí nessa futriquinha de vizinhos com um sujeito que não tem um pingo de vergonha na cara! Muito me admira, Fernando Henrique! Aposto até que vc sabia de todas as pilantragens desse...desse cara de amendoim. ( Cá pra nós: que gosto duvidoso tem o seu amigo! O Dô chama esse novo escândalo de Cockgate – não confunda com Colgate- e nisso ele tem toda razão). Desaprovo inteiramente sua amizade com esse imoral, essa mancha horrorosa num país tão próspero e tão sério. Porque, Fernando Henrique, nunca vi um povo tão cheio de princípios morais, quanto o povo americano. Benza Deus! Você deve deixar de lado essa sua amizade com o Bill mas intensificar suas relações com o povo americano. Só mesmo gente impoluta, com moral elevadíssima, com costumes seríssimos, faria tanto alardeio sobre a vida sexual do seu presidente. Se fosse com você ( Ave Maria!!) o povo daqui no máximo faria uma ou outra piadinha e seguia em frente . Lá não. Lá eles vão às últimas conseqüências, querem saber tudo, até se as calcinhas da Mônica Lewinski eram rendadas. E isso tudo é mesmo muito importante para o bem estar do povo americano, você sabe. Americano que se preze não vai deixar passar em brancas nuvens um caso extra conjugal do seu presidente. Mais fácil deixar passar uma Guerra no Golfo, ou uma retaliação vergonhosa ao povo cubano. Isso não derruba nenhum governo americano, mas se o Presidente se masturbar (se não pensar na Hillary, porque aí pode) o povo arruma uma quizumba tão grande que o desgraçado ou renuncia ou é renunciado. Que povo de moral irreprovável, hem Fê? Que maravilha! A Cotinha está tão fã do povo americano que até aposta que a maioria é virgem, que não existe adultério lá, que as pessoas casadas só fazem sexo com a aprovação do Papa e só pra se reproduzirem! Eu fiquei mais maravilhada ainda porque não só o povo exige que a vida privada do Presidente seja um livro aberto ( desde que na página certa) mas que a verdade, somente a verdade seja dita! Ou seja, o mais importante de tudo é que o Bill diga a todos que realmente as calcinhas da Mônica são rendadas, quantas vezes praticou o ato sexual com ela e outros detalhes dos quais me envergonho de te falar, porque sou sua mãe. O que não pode é mentir. Aliás, você deveria aprender um pouco com esse povo. Pelo menos a não ter uma cara tão cínica quando mente. Outro dia você disse que é irônico e que isto tem te trazido muitos problemas. Agora eu entendi! Era só ironia quando vc dizia que o ano passado seria o Ano da Saúde! Estava só sendo irônico quando alardeou que a taxa de desemprego estava até caindo! Estava fazendo gracinha quando disse que o povo brasileiro era caipira! Muito engraçadinho você, Fernando! E a gente aqui acreditando que o Presidente estava falando sério. Até te julguei mal. Pensei que você fosse o maior mentiroso da paróquia e você é só irônico. Que coisa!
Vê se para de andar em más companhias, deixe de ser cínico, aproveita o carnaval pra fazer um retiro espiritual, jejue e peça a Deus pra te livrar das tentações. Se encontrar o Bill na rua, faça de conta que não viu, pra não abalar sua reputação. Senão nem o povo americano vai querer ser seu amigo. Não tome gelado e evite vento pelas costas.
Da sua mãe que tem uma moral americana, Filó.




Pé da Serra, janeiro de 1998.

Fernando, meu filho.

Espero que o seu Natal tenha sido muito bom ao lado da sua família, dos seus amigos e dos seus inimigos, porque vc não se livra deles nem no Natal, não é meu filho? Uma das horas em que acho que ser presidente não deve ser lá essas coisas é quando vejo vc todo sorridente ao lado de gente que prefere ver o diabo pelado do que te ver na presidência. Que gente falsa, hem Fê? A Rutinha fez o pato com laranja de todos os anos? Será que ela aprendeu direitinho? Da última vez não estava muito bom, acho que ela exagerou na pimenta do reino.
Nós tivemos um Natal bem animado. A Filinha veio de Brejo Seco, com três netos que pareciam o capeta em figura de gente. Aquele seu primo, o Bráulio, também veio. ( A idade dele regulava com a sua, e vcs brincavam muito no rio, até o dia em que vc tentou afogá-lo porque ele te chamou por aquele apelido...er...acho melhor não falar, vc sabe) parece que ele continua com raiva de vc porque insiste em te chamar pelo apelido. Menino da natureza ruim, o Bráulio! Aliás, parece que todo mundo em Pé da Serra e adjacências está com raiva de você. Acho que é porque um desses seus amigos aí disse na televisão pra todo mundo ouvir que 1998 será bem pior de que 1997. Isso é coisa que se diga num país tão alvissareiro, próspero e bem governado? Se antes, quando vc sorria e dizia que tudo estava indo muito bem, a gente já sentia um travo na garganta, imagine agora que vcs mesmos vêm com a cara mais limpa deste mundo dizer que a gente que se cuide, porque o país está indo por água a baixo.
Pra piorar o ânimo da gente vem o Jatene e corta a verba da saúde no Ano da Saúde! Meu Deus do céu! O que está acontecendo com o pessoal de Brasília, Fernando? Será que não sobrou uma verbazinha que dê para tirar uma chapa da cabeça do Jatene pra ver o que ele tem no lugar do cérebro?
Aqui está um calor dos diabos. Quando a gente pensa que vai melhorar, vem uma tromba d’água e faz um estrago maior do que o que vcs fazem aí. Ontem, a ponte que separa Pé de Brejo Seco acabou de cair e o rio encheu tanto que vi a geladeira novinha do Zé Taioba ir correnteza abaixo, mais o sofá de corino da Zuleica, coitada, que ela ganhou no Natal, e até a saia nova de Inhá Lica ficou presa num galho na beira do rio. Uma pena! O Dô aproveitou a confusão para fazer um discurso, no alto daquele pé de jenipapo ( só ficou com os galhos superiores de fora d’água) e gritava possesso que a culpa de tudo era sua. Fiquei indignada! Porque vc pode ter culpa de muita coisa, mas de uma tromba d’água é demais! Aí ele contou uma história de 150 milhões de reais que deveriam ser usados para conter os efeitos do El Nino nos pequenos municípios e de como eles foram usados. Isso é fofoca do Dô, não é Fernando? Fiquei vermelha de vergonha. Vc me faz passar cada uma!
Você disse que 1998 será o Ano da Segurança! 1997 foi o Ano da Saúde, e só eu sei o que passei ( a Cotinha também) nesse bendito ano da Saúde. Se tivesse dinheiro teria procurado um psicólogo para me curar do medo de adoecer. Medo não: pavor! Só de pensar em precisar dos serviços públicos de saúde eu me arrepiava toda. Agora vem o Ano da Segurança. Sei não...talvez fosse prudente eu e a Cotinha irmos saindo de mansinho pelos fundos, na tentativa de encontrar um lugar seguro para vivermos este ano. Porque, pelo jeito, a coisa vai ficar preta.
Como estamos ilhados, impossível te mandar as rosquinhas e o licor de jenipapo. Estamos esperando socorro do Ibama que tem muito mico leão dourado por aqui, e pode ser que o Ibama se importe com eles.
Aí a gente aproveita a carona. ( Nos dois sentidos).
Fica com Deus. ( Tem ido à missa?) Beijos da sua mãe que não é mico mas que está em extinção, como a maioria dos brasileiros. Filó.



Pé da serra, 06 de julho de 1998.

Ô Fernando!...
Vi você na televisão e ouvi seu discurso! Que gracinha, Fê! Fiquei aqui relembrando o dia da sua formatura no primário, e aquele discurso lindo de despedida! Você fez todo mundo chorar, inclusive a Marieta, sua professora. Ela me abraçou em prantos e disse: - “Filó, este menino vai longe!”- E você foi, não é Fernando? Agora taí em rede nacional fazendo todo mundo rir, porque seu discurso foi muito engraçado. O Dô da farmácia ria tanto que contagiou o Tigrão, o Zé Mané e todo mundo que tava na venda do seu Nô, que lá tem uma televisão 20 polegadas. (Não é colorida mas deu pra ver direitinho ). Você não copiou daquele discurso de fim do primário, copiou? Achei que tinha alguma coisa a ver...mas acho que você não faria isso.
Achei você meio acabadinho, mas o seu terno estava muito bem passado. A Rutinha é muito cuidadosa. Como todo o povo brasileiro quero te parabenizar pelos 4 anos do real. Que maravilha, hem Fê? Sem esse monstro que comia a minha aposentadoria com um furor canibal, eu devo te dizer que eu também sou emergente ( e com muito orgulho) e como todo ex miserável, sou muito grata a você. Você sabe como tem gente mal agradecida neste mundo de Deus, Fernando! Conheço aqui mesmo em Pé da Serra gente que tinha um rádio de pilha e hoje tem televisão a cores! Gente que não tinha nem feijão pra comer e hoje tem geladeira pra guardar o feijão! E o mal agradecido do Dô diz que isso se deve à abertura do crédito ao consumidor, que todo pobre acha que pode comprar qualquer coisa desde que pague em 18 prestações fixas de 20,00, que o povo é burro porque não percebe que quando acaba de pagar tem uma geladeira que vale por duas, que quem ganha realmente com isto é o empresário que faz a sua ciranda financeira com os juros exorbitantes, que o pobre coitado do consumidor emergente cria uma úlcera por cada bem adquirido ( porque pobre tem dignidade e não suporta dever ninguém sem uma terrível ansiedade) que antes que acabe de pagar o tal bem o infeliz perde o emprego e apesar de metade das prestações pagas o “Conto Frio” vem e leva a geladeira embora por inadiplência, que...deixa prá lá! Esse Dô é mesmo muito ingrato e linguarudo. Mas uma coisa eu quero te dizer, Fernando, porque sou sua mãe e só quero o seu bem: a mentira é um pecado muito sério! Quando você for fazer um outro discurso, deixe claro qual é mesmo a sua prioridade, porque pegou muito mal aquela coisa do social. Ninguém acredita mais nisto. Nem eu, que sou sua mãe. Outra coisa, Fê: não pense que nós, mesmo emergentes, somos bobos. E a gente não quer só uma televisão a cores ou uma geladeira ou um som estéreo; a gente quer o direito de planejar o futuro, pelo menos alguns anos dele. O direito de viver sem temer uma doença que nos leve à assistência pública e consequentemente às portas do horror. O direito de comprar também um aspirador de pó que valha só por um, mesmo que você ache isto supérfluo. Supérfluo ( e isso você podia cortar sem medo de retaliação) é o PROER. Supérfluo, meu filho, é a sua candidatura. E muitas coisas mais!
De qualquer maneira seu discurso foi muito bonitinho. Tô mandando umas rosquinhas de aipim (receita nova que peguei na fila do banco). Cuide-se Fernando. Tome um Biotônico Fontoura, que acho que desse jeito você não agüenta a campanha.
Saudades da sua mãe que te garante dois votos( um meu outro da Cotinha),
Filó.








Pé da Serra, 16 de maio de 1998.
Querido Fernando.
Você se lembra de Lu? A Lurdinha filha da Sá Lina? Pois é Fê, ela foi à França ver a Copa e chegou antes da Final porque o dinheiro acabou, mas chegou deslumbrada. Ela achou aquilo lá o paraíso. Ala andava pelo Café des Arts ( pelo menos foi isso que ela me disse) e escorregou numa bucha de laranja que deve ter sido jogada por um cooligan, que nem brasileiro faz isso mais. Imediatamente o gerente da casa em frente levou-a para um hospital, na maior delicadeza, e a Lu foi tratada como uma rainha, ou melhor, como um ser humano. Ela ficou muito preocupada enquanto tiravam o raio X e faziam tomografia computadorizada porque, segundo os franceses, poderia ter acontecido algo mais sério do que uma simples fratura e não custava nada verificar. “Não custava nada!”, pensava a Lu, suando frio. Não tinha enfrentado nenhuma fila, não pediram carteira do INSS, nem de convênio, e o hospital era a coisa mais limpa e mais perfeita que ela já tinha visto. “Tô frita”, pensou. Vou ter que fugir desse lugar assim que me derem alta. Ela assim pensou, Fê, porque imaginou que não teria dinheiro para pagar um tratamento de 1ª classe daquele. Aquilo era coisa de rico, e você sabe, a Lu nunca foi rica. Algum tempo depois, tempo suficiente para quase ter um ataque de nervos, ela ficou sabendo que todo mundo era tratado assim, lá na França. Que aquele hospital não era de rico coisa nenhuma, era de gente, de qualquer gente, sem distinção de cor, religião ou status social. A principio ela não acreditou, acostumada que estava com o sistema de saúde do Brasil e pensou que iria ficar lá para sempre como acontece aqui quando você não tem dinheiro para pagar as despesas. Mas não ficou. É certo que saiu meio sem graça com aquele sentimento de quem ficou devendo alguma coisa. Igualzinho ao brasileiro quando sai de um posto do INSS quando consegue ser atendido e sair com vida. Todo agradecido, como se não tivesse pago por isto. Mas a Lu realmente não pagou nada, nadica de nada! E outra coisa surpreendente, Fernando, é que o dono da loja na frente da qual ela escorregou, deu-lhe toda a assistência, como se fosse da família. A Lu imaginou que ele fosse do exercito da salvação ou de alguma religião muitíssimo avançada, mas não era não. Era só um francês que pela lei é responsável pela calçada a frente do seu estabelecimento e ai dele se não desse assistência! Mesmo que a bucha de laranja fosse atirada por um brasileiro era ele o responsável. Que coisa, hem Fê! Não é facil acreditar nesta historia, mas como foi a Lu quem contou... e na vista de Sá Lina, não tive como duvidar. Agora entendo porque você gosta tanto da Europa, Fernando. Porque lá você é tratado como gente, mesmo se estiver com um sapato meio velho e uma camisa puída. Não tem jeito de fazer o sistema de saúde do Brasil ser assim, Fê? Quem sabe... ah! Me desculpe. Não precisa apelar. Sei que você vai me dizer que não tem dinheiro para tanto. Me desculpe mais uma vez, Fernando, se eu insisto, mas acho que dinheiro tem sim, senhor! Como não tem?! E as moedinhas novas? E o IPMF? E a campanha eleitoral? E a .... deixa pra lá! Sabe, Fê, estive pensando e fazendo as contas: para comemorar os 4 anos do real você mandou fazer as moedinhas novas e gastou com isto 362.000.000,00 ! Se em vez de fazer as moedas você dividisse esse dinheiro todo com os 160.000.000 de brasileiros, sabe quanto daria para cada um? Dois mil reais! Não seria um bom presente? Pergunte ao Dô, ao Tião Macaco, a qualquer um, se não preferiam ter 2 mil reais a pegar numa moeda toda linda e fresca. Não foi uma boa idéia? Pena que veio meio tarde, né Fernando, mas você não me consulta antes de fazer suas besteiras...
Não quero comentar o fiasco do ultimo jogo da seleção, mesmo porque esta historia esta muito mal contada. Mas que eles podiam pelo menos fingir que estavam jogando, podiam. Enfim, avant, mon petit! Tem ido a missa? Saudades da sua mãe que morre de inveja dos franceses, Filo.

Pé da Serra, 21 de julho de 1999
Fernando, meu filho!
Tentei ligar. Não consegui. Ora porque discava errado ( a propaganda que as telefônicas fizeram jamais explicaram que você tinha que tirar o zero do código da cidade, acho que antes do negócio começar nem eles sabiam disto) ora porque não conseguia mesmo. Parece que só depois do trem andando é que eles tiveram uma noção de como deveria ser o novo sistema. Foi bom porque economizei. Esta história de telefone para todo mundo foi mais uma falcatrua. Quando a gente comprava a linha, a tarifa era até normal. Depois desta história de copiar sistema europeu, ferveram feito abelhas africanas sobre a burra dos pobres. Um telefonema para o Bar do Tião fica mais caro do que um táxi para o mesmo local. Interurbano é mais barato. Aí, se eu quiser economizar vou até Brejo Seco e ligo para o Bar do Tião. Interessante, né? Também, num país como este quem era idiota de esperar que se fizesse alguma coisa para o povo, se não desse lucro para alguém? Me tira uma duvidazinha, Fernando Henrique: político é uma raça destinada a cuidar do bem estar do povo, não é? Um cargo político não deve dar lucro, né? A nação da qual eles cuidam não tem dinheiro próprio, ou seja, todo o dinheiro que o País movimenta vem do bolso do povo, não é meu filho? Na forma de impostos, pois não? Pois sim! De hoje em diante não pago imposto nenhum! Tá bem que eu não pago imposto de renda - nem renda eu tenho - mas pago sobre o dentifrício que eu uso, sobre a dentadura que mandei fazer, sobre o pão, sobre o sabonete...tem jeito não. Vou terminar os meus dias pagando a taça de champanhe que você ostenta nas reuniões dos grandes, enquanto nem água brasileiro toma de graça. Por falar em água, conseguiu um tête- a - tête com Deus para saber como fica a situação da Seca do Nordeste? Você, e sua mania de grandeza. Poderia mandar alguém com menos poder averiguar porque aquelas máquinas de furar poços andam enferrujando a poucos passos de quem morre de sede; porque a fazenda de um coronel tem água a rodo ( água tirada com essas mesmas máquinas) e a do pobre coitado do Zé da Silva espera a água cair do céu. Deus não tem nada a ver com o descaso desses senhores que devem cuidar do bem estar do povo. Da próxima vez que você se candidatar eu vou votar em Deus e que você que vá pro diabo que o carregue ( Deus me perdoe) !
É verdade que você disse que o sonho do pobre brasileiro é estudar inglês para navegar na Internet?
Engano seu. Pra navegar na Internet não precisa saber inglês. Tem programas que traduzem até páginas em javanês, seu pulha! O sonho do pobre brasileiro é aprender inglês para fugir de um país onde seu presidente diz bestagens como esta, enquanto ele pensa de onde vai tirar o pão de cada dia. Ou quem sabe, aprendendo inglês ele possa fazer um curso de pós graduação em Oxford, depois de passar pela escola rural, se conseguir uma vaga? Acho que você nem sabe o que é ser pobre neste país, Fernando Henrique. O pobre do qual você fala já deve nascer falando inglês. O pobre que eu conheço e prolifera neste país, não tem rede de esgoto, não tem água potável, não tem emprego. Estou sendo pessimista? Disse muito "não"? Tá bem: o pobre que eu conheço tem mais de cinco filhos, tem malária, tem tuberculose, e muita, mas muita paciência.
Tem ido à missa?
Da sua mãe, vermelha de vergonha, Filó.

Pé da Serra, outubro de 2002
Fê, meu Filho!
Estou mandando pelo portador umas folhinhas de funcho. Pede a Rutinha para fazer um chá e tome bem quente que é muito bom para os nervos. Mas só o chá não adianta muito não. Faça aquela novena para Santa Edwiges que é muito milagrosa. Só com muita reza, muita fé mesmo para conter a subida gloriosa desse proletário. Ele é comunista, não é Fernando? E ateu! Deus me livre! Só te peço que não baixe o nível, meu filho, e nada de macumbas nem vodus, que essas coisas eu não aprovo e nem o Papa. Continue se fazendo de morto. Se puder ( e tiver coragem) dê uma ajudazinha ao Serra. Diga que seu governo vai fazer tudo pelo social – mas eu acho que você já disse isso, que diabo! (Ops!)- ou então mude o penteado e tire os óculos. Acho que vai parecer menos neo liberal. Mande uns santinhos que eu e a Cotinha vamos distribuir e colocar alguns nos pés do Santo Antônio. Se bem que o frei Hilário tem andado muito enrabichado com o Dô, aos cochichos, e na missa de Domingo ele até falou do...er... do comunista operário com um brilho estranho nos olhos. Será que o frei Hilário virou a casaca, e de homem fervoroso que era, passou para a horda desses comedores de criancinhas? Se for, eu vou mudar de paróquia.
O seu primo Bráulio esteve aqui no final de semana rindo até as orelhas. Ele não esquece mesmo as diferenças de menino que teve com você e parece que te odeia. Aliás, Fernando, tem muita gente que te odeia aqui em Pé da Serra e acho bom você não vir fazer campanha por aqui. Temo por sua integridade física. Além do mais se correr o boato de que você está vindo, o Dô é capaz de armar o maior circo, se não chamar o nordeste inteiro para almoçar com você. O Dô é doido!
Não tenho mandado mais biscoitos de araruta porque a venda do Tião fechou e ninguém me vende fiado, sabendo que sou sua mãe. Você acabou com tudo e até com a minha reputação de boa pagadeira. Tenho passado maus bocados mas não me queixo. Tem gente demais passando maus bocados. Ninguém vai segurar o comunista operário! O povo, você sabe, se vinga nas urnas. Tá bem que ele não é lá muito culto nem muito elegante, nem tão letrado como você, mas acho que por isso mesmo ele parece saber mais de gente. Ouvi falar que ele foi um pobre como esses que estão saqueando no nordeste. Deve entender bem de miséria. E de como sair dela, ao que parece. Estou quase acreditando que ele não é ateu nem comunista. Um moço tão bonito e simpático! Se até o frei Hilário...sei não! Você votaria nele, Fê? Não precisa responder. Fica com Deus. Tem ido à missa? Um beijo da sua mãe neo liberal, Filó.

Pé da Serra, março de 1998.

Fernando, meu filho.

Que beleza este novo código de trânsito, hem Fê? Se bem que ainda tem muitas irregularidades por aqui. Por exemplo, o caminhão do Zé Taioba só tem um cinto de segurança e ele está meio sem saber como vai arrumar cinto para aquele povo todo que ele traz aos sábados, para a cidade. Aí falaram que ele não pode carregar ninguem na carroceria. Mas não cabe todo mundo na boleia! E o pessoal precisa vir vender verduras no mercado! Será que quem fez o Código vai mandar um ônibus para carregar o pessoal? Outra dúvida dele: porco e cabrito também têm que usar cinto? Galinha ele acha que não, porque galinha voa. ( Baixo, mas vôa). O cabo Pires já multou o Zé trezentas vezes e ameaçou por fogo na carteira dele. Mas o Zé nem carteira tem! Acho que ele implica muito com o coitado só porque não tem outro automóvel na cidade. Tem a carroça do Zé Mané, mas carroça não conta, eu acho. Aí o prefeito ameaçou de requisitar alguns guardas de trânsito para coibir tais irregularidades que poem em risco a vida desses cidadãos. Cidadãos vem de cidadania, não é Fernando? Então não é o caso. Se prenderem o Zé ( e o cabo Pires tem ameaçado) o que vai ser daqueles pobres moços que vêm da roça? Há quarenta anos que o caminhão do Zé carrega aquela gente! Outra coisa: estão ameaçando de tirar de circulação todos os carros com mais de 10 anos de uso. Valha-me Santo Deus! O que eles estão pensando, Fernando Henrique? Que estão na Europa? Onde é que eles vão jogar todos os carros do país com mais de 10 anos? No Oceano? Não vai caber. Aí eles disseram que vão dar incentivos para que as pessoas que têm esses carros velhos possam comprar um carro novo. Isso é uma piada de muito mau gosto. Quem tem um fusca 1975 não é porque adoooora fusca. É porque não tem outro jeito. Que incentivo será suficiente para dar ao infeliz capacidade financeira para comprar um carro novo? 20%? 50? 80? 90% E os 10 por cento? De onde o coitado vai tirar se a maioria não tem nem mesmo um emprego? Ô Fê! Pelamordideus! Diz pra esses congressistas darem um pulinho aqui em Pé da Serra! Quem sabe assim eles têm uma idéia do país em que estão vivendo. O Brasil não é Brasília. O Brasil é Pé da Serra, Brejo Seco, e tantos e tantos quilômetros a mais de terra com gente e não eleitores. Porque parece, meu filho, que gente, para esses senhores não existe. O que existe são eleitores. E eleitores só existem até o dia da votação. Gente não. Gente existe o tempo todo e pode incomodar um pouco.
Você não é amigo desse tal de Naya, é? Eu sei, eu sei! Você não é culpado daquele prédio ter caído, mas se for amigo daquele sujeito convém se confessar, por via das dúvidas.
E o carnaval aí em Brasília? Foi bom? Aqui não foi grande coisa, mas a Unidos de Pé da Serra estava até bonitinha.Tinha um destaque usando apenas um duas peças e eu acho que era a sirigaita da Zuleica da Maria Rita. Não tenho certeza porque não olhei muito, que não gosto nem nunca gostei dessa pouca vergonha. O carro alegórico estava muito bonito e nem dava direito para ver que era o caminhão de carregar galinha do Zé Taioba, tão enfeitado estava. No meio da folia deu uma chuvarada e o cabelo do destaque engrunhou todo. Fora isso, não teve nenhum atropelo. Correu tudo na Santa Paz, se é que se pode dizer isso de um carnaval. Na Quarta feira de cinzas estava todo mundo na igreja, menos o Dô, que aquele capeta é ateu, você sabe. E comunista também. Falando no Dô, ele vai mesmo se candidatar à Presidência. Ainda não sei por qual partido, mas vou escarafunchar e te falo. Quem sabe você encontra alguma brecha e interdita a candidatura dele? Aqui em Pé da Serra o eleitorado todo é dele. Com exceção da Cotinha e eu, você sabe. Se puder, mande uns santinhos pra gente distribuir em Brejo Seco antes que o Dô tome conta de lá também.
Tome juízo e não como carne que estamos na quaresma. Tem gente que já viu mula sem cabeça por aqui. ( O Dô disse que só podia ser você) . Um beijo na Rutinha. Sua mãe, Filó.
Pé da Serra, novembro de 1998
Há-há-há-há-há-há-há-há-há-he-he-he-he-he-he-he-he-he- hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi!
Qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua!!
Há-há-há-há-há-há-há-há-há-he-he-he-he-he-he-he-he-he- hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi!
Qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua-qua!!
Fernando, Fernando!
Você me mata de tanto rir, Fernando! Aquela entrevista que você deu ontem foi a coisa mais engraçada que já ouvi nos últimos tempos. Nem o JÔ Meia Noite e Meia, nem mesmo o Chaves podem ter piadas mais engraçadas. A Cotinha está aqui chorando desesperadamente de tanto rir! (Pelo menos acho que é de tanto rir...) Então você acha mesmo que o sacrifício é pouco! você é mesmo muito engraçado! É pouco né, Fernando? É pouco porque não é com você, seu crápula! (Que Deus me perdoe)! Se eu não fosse uma dama, te diria todos os palavrões que você falava quando criança. E se você fosse criança, te daria a maior surra da sua vida, pra aprender a ter mais respeito com as pessoas. Que você soltasse esse pacotaço aí, também concordo que fosse necessário. Que alguém tivesse que pagar a conta da sua estupidez, também concordo, e, aliás, acho até natural que seja a vilipendiada classe média a fazer isso. Afinal, desde os meus tempos de menina não tem classe mais perfeita para pagar contas do que a classe média, e isso tem acontecido numa escala tão desesperada que ser da classe média hoje é quase tão perigoso quanto ter sido dono de supermercado no plano cruzado: de repente seu nome pode ir para as páginas criminais como inadimplente das burrices do Governo. Se isso der cadeia tá todo mundo frito! Coitada da classe média, Fê! Onde é que ela vai parar? É preciso dar um tempo para ela se habituar a virar miserável. Não é assim de repente, como se cortasse as asas das cobras. E saiba você que cobra nunca teve asas, e que a classe média merece ter um pouco de sossego. Porque você não virou sua tesoura para os endinheirados? Porque aumentou o imposto de renda das pessoas físicas e não das jurídicas? Porque as pessoas físicas têm o imposto descontado da folha de pagamento e não podem dar o cano, né Fê? E descontado do salário!! Cê não ouvia seu velho e sábio pai praguejar que salário não é renda? Que era um absurdo esse negócio de descontar imposto de renda de assalariado? Quantas vezes você ficou sem um sapato novo porque seu pai tinha que pagar o famigerado Imposto sobre a renda-salário? Bem, mas isso não vem ao caso agora, são discussões sem sentindo. Aliás, nada faz sentido, como não faz sentido você despejar toda a sua fúria na coitada da classe média. Que é que você quer fazer? Parar o país? Quem faz essa porcaria toda girar é a malfadada classe média sua anta! (Deus me perdoe)! você acha mesmo que se jogar as taxas de juros lá nos picos vai impedir a revoada do capital estrangeiro? Capital estrangeiro bom, Fernando, é aquele que vem para ficar, em forma de empresas, que gera trabalho e fundos! Não o capital de especuladores, que vem arrancar da gente o que a gente não tem. É claro que ao menor sinal de perigo eles, que não são bobos nem nada, tratem de levar seus dólares para lugar mais seguro e mais sério. E o pior, Fernando, é o pavor que está tomando conta aqui do povo de Pé da Serra. Pode dizer só para mim, no pé da orelha: cê tem certeza de que a inflação não vai disparar? Cê tá certo mesmo de que o real não vai pro brejo? Porque se isso acontecer, Fernando Henrique, pode parar de me chamar de mãe! Juro, por São Judas Tadeu e por esta luz que me alumia: se isso acontecer, a única mãe que você vai ter é aquela...você sabe muito bem qual! (Que Deus me perdoe)!
E vê se para de rir!! Ninguém aqui é bobo! Seu peste de uma figa!!
De sua mãe (por enquanto),
Filó.
Pé da Serra, 24 de outubro 1998.
Querido Fernando
Não sei se devo mas quero e preciso te dar uns conselhos já que, mesmo que muita gente pense o contrário, você ainda tem uma mãe. Fê, fico feliz em saber que apesar de tudo o povo brasileiro te escolheu de novo para presidente e espero, com muita fé, que você faça jus a essa escolha espantosa. O povo tem mesmo um coração mole, né Fê, e você sabe disto muito bem. Sei não, acabo crendo, como o Dô, que o povo anda meio alucinado e meio mole dos miolos, mas se o povo quer, o povo tem. Dizem que isto é democracia e eu acredito. Não tenho muita escolha. Só quero te pedir umas coisinhas:
1º - Se sobrou algum dinheiro, mande consertar o Hospital mãe de Deus, aqui em Pé da Serra, e troque os atendentes, porque eles são muito mentirosos e preguiçosos. Vivem dizendo que não há leitos, não há medicos, não há remédios. Eu sei que isto não é verdade porque vejo televisão todos os dias e sei das maravilhas que seu governo fez para a Saúde. Se os atendentes continuarem a contar essas mentiras é capaz do povo acreditar.
2º - Se você está pensando em pedir dinheiro emprestado lá fora para cobrir o rombo cá de dentro, pelamordideus! Não conte com o coitado do povo para pagar os juros de suas dívidas. Posso te afirmar que, aqui em Pé da Serra, ninguém tem dinheiro nem para pagar a prestação da geladeira nova, quanto mais para pagar juros desse senhor que eu até admiro por sua extrema bondade. Ele é católico?
3º - Não se esqueça de que você jurou que não ia aumentar impostos e nem viria por aí nenhum pacote fiscal! E isto eu ouvi e vi você falar na televisão em close, não foi candonga não! O Dô gravou todas as suas falas no Horário Eleitoral Gratuito e pode provar.
4º - Ouvi dizer que você tem um saco de maldades para abrir só depois das eleições, e fico arrepiada só de pensar, porque sem saco nenhum você já fazia das suas, imagine com um saco previamente cheio!( De maldades, não me entenda mal.)
5º - Tenho confiança de que você está tratando o tal do FMI a pão de Ló, como eu trato o Cabo Pires e o dono da venda, seu Noca. O cabo Pires eu trato com rosquinhas de aipim e muitos sorrisos e salamaleques, porque tenho um pouco de medo dele surtar como acontece as vezes com algum PM, e que resolva, de repente, me dar uma correção. Se ele resolve bater com o cassetete no meu calcanhar, estou perdida! Você sabe que eu tenho joanetes e vai que ele acerta!
Seu Noca, eu só não abro um tapete vermelho à sua passagem ,porque nem tapete eu tenho, mas todos os dias mando um agradinho para adoçar a boca dele e a minha dívida que, apesar de todos os esforços, não consigo saldar. Tem dado certo. O tal do FMI parece ser um senhor muito rico e pode ajudar o Brasil , mas você tem que fazer a sua parte. Trate-o com todo o carinho que ele merece, mas não exagere. Pode fazer um agrado, mas sem limpar a despensa que, pelo que sei, já não está lá essas coisas.
6º - Uma última recomendação e das mais importantes, Fê: vai lá no Ratinho ( vai ser até bom, porque você ainda ganha um cachezinho) e faz todas aquelas promessas que você fez no Horário Eleitoreiro Gratuito, para que todo o Brasil saiba das suas boas intenções. Nessas propagandas gratuitas ninguém acredita, mas no Ratinho a coisa é séria. Só peço para não levar o Congresso porque senão vai dar pancadaria. Me avise o dia para eu ficar de olho.
Feliz governo para você, meu filho e que Deus te perdoe. Da sua mãe eleitora, Filó.

Pé da Serra, setembro de 1997

Fernando de Deus!

Que país mais justo, mais equânime (ouvi o Serjão falar essa palavra, achei linda, estou usando) mais verde e amarelo! Já dizia não sei quem ( minha memória não é mais lá essas coisas) jamais verás país algum como este! Aquela mulherzinha sem o que fazer, roubando remédio numa farmácia, heim, Fê? Que vergonha! Onde já se viu! Ainda bem que nós temos justiça aqui e prenderam a larápia. Depois o Dô fala que não existe justiça neste país. Olha aí o exemplo. Aquele mulherzinha desempregada não pensou que podia roubar asssim descaradamente, daquele senhor tão bem apessoado e digno, o pobrezinho só é dono de uma farmácia qualquer, nem carro importado tem, o coitado! E vc viu, Fê? Os bandidos dos PMs ( que Deus me perdoe) ainda quiseram evitar o flagrante, pagando o remédio. Mas o dono da farmácia foi honestíssimo e deu a queixa assim mesmo. Vc já pensou o que seria de nossa justiça se a cada caso de roubo viesse alguém tapando o sol com a peneira? Ninguém ia pra cadeia, o que não é o nosso caso, graças a Deus, que nesse país alvissareiro justiça é o que não falta. Seja pobre ou rico, roubou...tá na cadeia! E por falar nisso já pegaram todos os envolvidos no caso das laranjas? Estão em alguma penitenciária de segurança máxima, eu sei, no maior sigilo, para não serem linchados.
Tenho visto o Brasil em Ação na TV. É algum seriado, Fê? Ou a nova novela das seis? Sei não... tô achando meio inverossímil...as novelas hoje são tão reais! Ouvi dizer também que vc gastou R$35 milhões nessa novela! Três vezes mais do que custará a campanha de prevenção contra a Aids. Não é exagero não Fernando?... Se vc mandasse um pouquinho desta verba destinada ao Brasil em Ação para a saúde aqui de Pé da Serra, ou pra consertar o Grupo Escolar ( o teto acabou de desabar) garanto que não ia fazer falta e cá pra nós, ia ser uma propaganda bem melhor. Pelo menos uns 5 votos vc ia ganhar de gente que deixou de morrer na fila do Inamps, das professoras e das mães dos alunos. Ia até calar a boca do Dô ( não posso garantir que ele votasse em vc, porque é da oposição e não baixa o topete de jeito nenhum!).
Esse negócio de vc falar que “desemprego já está virando obcessão” acertou na mosca, Fê. Tem muito desempregado obcecado por um emprego. Dois milhões e quinhentos mil empregos fechados é pouco, né? São só duss milhões e quinhentas mil pessoas sem o que fazer e sem nenhum chance de virem a ter. Se vc contabilizar aí as pessoas que dependem desses dois milhões e quinhentos sem o que fazer.... imagine uma cidade do tamanho de Belo Horizonte com todo mundo que mora nela sem emprego! E o futuro não é catastrófico Fernando Henrique? Você continua sempre tão otimista, meu filho, que me dá vontade de chorar. Que Deus te abençoe e te perdoe.
A Rutinha vai bem?
A Cotinha está organizando aqui a Jornada dos Excluídos. Ela não sabe bem excluídos do que e está pensando que são aquelas pessoas que a atendente do Inamps bate com a portinhola na cara, depois de dois dias na fila. Tentei explicar que aqueles ainda podem voltar no dia seguinte e que, portanto, não são excluídos, mas ela - você conhece a peça - não quer nem saber onde bate o sino: quer é acompanhar a procissão! Pode ser que vc receba aí no palácio um bando de gente com a carteirinha do Inamps na mão provando que é contribuinte e que merece respeito. Se é que eles vão aguentar a jornada. São tão perrengues, tadinhos! Fala pra Rutinha servir umas rosquinhas de nata pra eles, pelo menos. Tenho certeza de que não vai fazer falta.
Deus te abençoe e te perdoe.
Sua mãe, com muito constrangimento,
Filó.





Pé da serra, 28 de março de 1999.
Fernando do Céu!
A coisa aqui tá preta. São Jorge, São Cosme e Santa Edwiges não estão dando conta do recado. Por isso resolvi apelar para outros santos, não tão famosos, mas que devem ser bastante milagrosos também, já que estão na lista de santos. Tinha uma folhinha meio antiga do Armazém são José ( você lembra?), que trazia não só os nomes, mas as fotos de todos os santos da Santa Igreja. Procurei aqueles de ar mais angelical e piedoso, e achei por bem contratar Santo Antão e outros de nome estranho para fazer a suplência de São Jorge, Cosme e Edwiges. Parece que os três ou foram demitidos ou baixarão de escalão, porque, meu filho, a coisa aqui tá preta mesmo. Pode ser também que, diante das circustâncias, os meus santos estão muito assoberbados. Melhor dar-lhes umas férias. O Dô, aquele futriqueiro, anda espalhando que você não está enxergando direito, que só você não vê que a coisa tá mais que preta, que você está cego e coisa e tal. Trocou de óculos? teve alguma conjuntivite recente? Seu olho tem amanhecido remelado? Cuide-se, Fê. Não deixe chegar num ponto em que seja irreversível. Eu por mim, acho que pode ser um cisco no olho, desses grandes, que com o poeirão que você tem levantado com as obras sociais, pode ter entrado um tijolo no seu olho.
Como se não bastasse a queda, o coice. Tia Cotinha passou uma magrela com uma dor de dente. Você vai perguntar que dente, se Tia Cotinha é banguela. É. Quase totalmente, mas tinha um caquinho do lado esquerdo. Como é de praxe, assim que o caquinho começou a incomodar levei-a ao dentista. Maneira de falar, porque até chegarmos ao dentista propriamente dito levamos 5 meses, 6 dias e três horas. Vagamos como duas patetas entre guichês, postos de saúde, marca isso, marca aquilo, e enquanto isso o rosto de Tia Cotinha parecia um melão de tão inchado e ela urrava de dor, coitadinha. Quando finalmente marcaram a consulta, nós caímos duras e cansadas naquele banco de madeira do corredor de espera, o que me causou uma ligeira lombalgia. É claro que não procurei um médico. A minha fé não é tão grande assim. Convoquei um santo da minha nova lista e ele deu jeito. Bem mais rápido e eficaz do que procurar posto de saúde. E sem efeitos colaterais. Já a Tia Cotinha, feliz por ter conseguido marcar o dentista, já não sentia dor, graças a Deus, e pode esperar tranquilamente os 5 meses. Fico imaginado se ela tivesse mais de um caquinho. No dia marcado fomos, brejeiras, ao dentista. Foi rapidinho, Fê. fiquei até espantada. Três dias para conseguir marcar uma consulta para daí à cinco meses, que não durava nem cinco minutos. Foi pá- pum! Tão pá-pum que Tia Cotinha nem viu. Tinha desmaiado. O gabinete dentário era bem moderno. O mesmo de quando eu era menina. Ele,o dentista, (acho que fica melhor dizer protético) levantou a cadeira no fole, e embora não tenha usado o motor, vi que ainda era daqueles de pedal. Se o DOI - CODI fosse um pouco mais inteligente teria usado uma dessas cadeiras de dentista para torturar os comunistas. Quando Tia Cotinha viu o boticão nem precisou de anestesia , por isso eu acho que ela ajudou alguma coisa na contenção de despesas que você vem fazendo. Aliás, que nós somos obrigados a fazer, porque numa coisa o Dô tem razão: há outras coisa que poderiam ser cortadas que não a verba da saúde. Não vou ser tão radical como ele (ele acha que seu pescoço é que deveria ser cortado) mas que tem, tem. Mas fique sossegado, Fernando, que depois disso, quase que não passamos por mais agruras. Muito simpático, o dentista receitou um remédio para dor. Fomos à farmácia. Não tinha. A do SUS, eu quero dizer, porque na farmácia do Dô possivelmente teria, mas lá a gente tem de pagar. Como Tia Cotinha já é pós- graduada em dor, nem foi preciso comprar. Só ficou um problema: os pontos. Disse o delicado protético que era preciso retirá-los. Perguntei-lhe quando. Lógico. Nós estávamos ali diante dele, foi uma luta chegarmos mas chegamos, era só ele pegar a agenda e marcar, pensei. Pensei errado.
"-E eu sei?” - Respondeu - “A Sra. vai a um posto de saúde e pede para marcar o dia." Tudo bem, Fernando. Nós temos paciência e sabemos esperar. Mas e os pontos? Será que agüentam
Tem ido à missa? Vacinou contra febre amarela? Um beijo da sua mãe, banguela de todo, graças à Deus, Filó.





Pé da Serra,10 de abril de 1999
Fernando do céu!
Faça alguma coisa, chame os bombeiros! O país tá pegando fogo! Literalmente! Você vai esperar que queime tudo do Oiapoque ao Chuí? Ou esperar que o fogo chegue em Brasília? Tô vendo um clarão lá pros lados da Serra Careca, e aqui não tem Corpo de Bombeiros. Nem extintor de incêndio tem. Na prefeitura tem um mas já perdeu a validade. Será que a gente vai ter que sair em debandada com o fogo atrás? E correr pra onde? Pro mar? Que ilha do Atlântico vai aguentar esse povo todo sem afundar? Uma dúvida: vai ficar todo mundo junto? Rico e pobre, patrão e empregado, Sem Terra e latifundiário, PFL e PT? Não vai dar certo. Diria mesmo que se não fosse o Brasil a se incendiar, seria o início da 3ª guerra mundial.
Bem, enquanto o fogo não chega aqui, aquele mosquito subversivo tá que tá! Você ainda não pegou a Dengue, né Fê? Fala com a Rutinha pra não deixar água nos pratinhos das violetas, nem pneu jogado no quintal. Você tem certeza de que o lago do Planalto não está infectado pelas larvas? Cuidado também com a febre amarela. Diz que mata mais que a Dengue. Aí eu fico pensando como será que o mundo lá fora vê essas epidemias provocadas por esses mosquitos comunistas que só querem denegrir a sua imagem . Eu fico pensando também se não seria mais seguro a gente se mudar para uma tribo da África que lá pelo menos a ONU toma providências. Aqui a gente tá na mão de calango. Falta de dinheiro não deve ser, porque o IPMF foi um sucesso, e pelo que sei, o dinheiro arrecadado era só para a saúde. Vai ver entenderam tudo errado e têm toda razão. Dinheiro pra qual saúde? Se tivessem escrito lá que o dinheiro arrecadado era pra doença, aí sim! Todo mundo tinha entendido. Você podia mudar o nome de Pasta da Saúde para Pasta da Doença. Ficava mais fácil para esses analfabetos saberem que dinheiro da Doença é pra tratar doenças. Engraçado é que em 1996 nem se falava muito da dengue, e o carro da fumaça passava todo santo dia e vinha os homens da prefeitura inspecionar o quintal, dedetizando e pregando aquele papelzinho atrás da porta da sala. (Eu até arranquei o tal papel assim que eles saíram, porque me fazia sentir insultada: será que eles estão pensando que não sei limpar minha casa?) Agora, o carro da fumaça passa uma vez na vida outra na morte e nenhum homem de colete amarelo passou por aqui. Será por que Fê? Será que é um plano diabólico para acabar com essa raça danada? Vai ver o Governo está cansado de governar esse povo caipira e reclamador, trouxe importado do Egito o tal mosquito, e deixa que ele lentamente dizime o Brasil. Aí, pra ser mais rápido, veio de brinde o mosquito do Amarelão, e o Bacilo da tuberculose. É o crime perfeito. Pode ser também que o povo brasileiro, desesperado, resolveu se suicidar e de propósito cultiva as larvas do Aedys (acho que essa teoria é mais aceita pelo governo) e portanto ninguém é culpado a não ser o próprio povo. Não que eu pense que você tenha alguma coisa a ver com isto. Longe de mim. O Dô tem outra teoria que até acho meio simpática. Diz ele que o Aedys é um mosquito contratado pelo PT para picar todo mundo que tivesse a severa intenção de votar em você. Seria o castigo antecipado e neste caso o Aedys teria uma antena (tipo um radar) que captaria toda intenção de voto. Logo o mosquito seria um anjo disfarçado e que no final, só faria o bem. Não deu certo e não quero discutir tais teorias. Mas quero te pedir (de joelhos, se preciso for) que olhe nas suas gavetas onde foi que você guardou o dinheiro do IPMF! Porque na prática o que está acontecendo com a saúde não tem teoria que justifique nem reza brava que resolva. Se resolvesse a Inha Lica não teria pegado Dengue.
Tô com uma febrezinha enjoada- deve ser gripe - por isso vou parar por aqui. (Se for dengue eu vou votar no Lula)! Segue um pano de prato que a Cotinha bordou com ponto de cruz, uma gracinha! Fala pra ela não lavar na máquina que desbota todo. Um abraço febril da sua mãe que com fé em Deus só sofre de unha encravada.
Filó

Fernando de Deus!
Como se não bastasse o pavor de ter de volta o monstro inflacionário, ainda tenho que ajudar a pagar uma dívida que não fiz! Fiz uma trezena para N. S. dos Impossíveis, para que Ela ilumine esta cabeça de jumento que você tem. Você é mesmo muito engraçadinho! Se a Inhá Liça resolve esbanjar todo o dinheiro que tem, e depois fica numa pindaíba de dar gosto, não sou eu que tenho que pagar os desmandos dela, pois não? Ta certo que somos vizinha e muito amigas, mas vou ter que cortar meu doce de leite de sobremesa, minha rosquinha de aipim no chá das três, para que ela recupere suas finanças? Porque eu? Porque ela continua com suas farras, constrói até mais uma piscina na mansão, aumenta o salário dos empregados, enquanto eu tenho que mandar o Mario Covas para a casa do Dô, do contrário ele morre de fome. O Zé Taioba vende o caminhão para que Inhá Liça não venda seu carro importado. Cá para nós, Fernando Henrique! Isto não é justo. Meter a mão no bolso do povo, enquanto aí vocês esbanjam como se nada tivesse acontecendo, é o fim do mundo. Porque é que o Brasil inteiro está construindo prédios milionários para o Tribunal de Contas? Ainda mais para o Tribunal de Contas! Será que você resolveu prestar contas do dinheiro do CPMF? Mesmo assim, você não acha que bastaria um barraco no fundo de casa? Aumentar impostos quando o dinheiro do tesouro acaba, é uma medida desumana e cruel. O que você está fazendo é tirar o dinheiro da latinha do cego, ao invés de colocar. Isto é pecado Fernando Henrique e dos mais cabeludos.
E olhe aqui, seu! Não vou fazer papel de fiscal dos preços. Já chega uma vez. E não deu certo.

Pé da Serra 1ºde julho de 1999

Querido Fernando

Sei como você deve ter ficado mortificado com o caso da Valzinha e do Cleobaldo. Uma coisa dessas acontecer durante o seu governo é mesmo de fazer qualquer presidente de bem ficar preocupado. Mas não se amofine mais do que é devido, meu filho, porque tenho uma boa notícia: o Cleobaldo está curado!Se não pelo pronto atendimento da Saúde Pública, pela interferência direta d’Aquele que não cobra imposto nenhum. Não ouso dizer que foi com a ajuda de Santo Inácio ou de Santa Edwiges, porque a Valzinha é evangéilica e não admite pistolões de santo nenhum, interferência alguma do baixo escalão nas decisões divinas. Seja lá como for, a verdade é que, ai deste povo se não fosse a fé! Vi pela televisão outro dia, o caso daqueles hospitais sem energia elétrica, o livro onde os médicos anotam seu desespero. Que diabo é isto, Fernando Henrique?Como é que você pode aparecer na televisão com este seu sorriso eterno, para dizer que tudo está bem? Não tem vergonha? Ou acha que somos todos idiotas? O que é que vai bem? A bolsa de Valores? O dólar? Os juros? Ou a conta na Suíça dos seus amigos? Dê um pulinho aqui em baixo onde mora gente e me diga se tudo está bem. Venha ver de perto os números estatísticos transformados em gente. Venha ver o desespero de um homem chamado Zé daGrota que depois de 20 anos de serviços numa empresa, se vê na rua, com 40 anos de idade (portanto sem nenhuma esperança de conseguir outro emprego) três filhos menores . Junto com o emprego ele perdeu o seguro saúde, a própria saúde e a dignidade. E o Estado que é responsável pelo bem estar dos seus cidadãos, morre de rir porque os juros caem, a bolsa sobe, e a imagem do país lá fora se restabelece? Que me importa, a mim, à Cotinha ao Zé da Grota quantos por cento caem os juros internacionais, se dentro das nossas casas a única coisa que sobra é desespero? Um país cujos filhos morrem -literalmente- sem assistência alguma não tem do que se orgulhar, muito menos do que rir. Quando Fidel Castro se isolou do resto do mundo ( ou foi isolado) soube muito bem tomar conta daqueles que formavam a nação Cubana. Ele simplesmente deu conta do recado ainda que o mundo inteiro, indignado pela propaganda americana, o considerasse um déspota desumano e cruel. Cruel é quem vê seu povo se chafurdar na mais infame das misérias, cruel é quem segura o salário a níveis irrisórios e permite reajustes das tarifas dos serviços básicos como energia e água, desumano é exigir crianças nas escolas cujos pais não têm o que comer em casa e ainda ameaça-los de prisão se os filhos faltam às aulas, usando um modelo europeu, onde não faltam escolas, onde todos os pais e mães são alfabetizados.Porque não ameaça quem desvia o dinheiro do orçamento da saúde? Porque não prende quem, usando de poderes outorgados por esse mesmo povo, constrói majestosos tribunais para uma justiça que nem sequer existe? Desumano e cruel, meu filho, é aumentar a gasolina todos os meses, numa economia sem inflação ( é o que vocês dizem) para cobrir um rombo no orçamento. Cruel é quem cobra CPMF para aumentar a receita da saúde e nem mesmo explica para onde foi o dinheiro. Desumano é quem super fatura remédios que não servem para nada para deixá-los apodrecer sem uso num país onde não existe saúde, muito menos assistência. Cruel é quem assiste, comodamente assentados em poltronas de couro, com um sorriso cínico, à uma miséria digna de qualquer aldeia africana.
Você conhece a Constituição, Fernando Henrique? Eu conheço e sei que é dever do Estado assegurar a saúde, educação e segurança dos Cidadãos. Se é obrigação dos pais manterem seus filhos nas escolas e eles podem ser presos por não cumprirem com este dever, mande prender os governadores e os prefeitos que não garantem as vagas necessárias. E, como cidadã lesada nos meus direitos de saúde e segurança, dou voz de prisão à você, presidente, por não cumprir meus direitos constitucionais. É um direito que eu tenho. Algumas mães que deixaram seus filhos sem escola, nem mesmo sabem ler a intimação recebida. Você, entretanto, é alfabetizado. Por favor, leia a Constituição e nos devolva a nossa dignidade.
De sua mãe, brasileira sem eira nem beira, Filó.

Pé da Serra,15 de junho de 1999
Fernando Henrique

Estou desolada, ar-ra-za-da! para não dizer indignada e furiosa! Já desisti de entender as suas razões, meu filho, ou a falta delas, mas o que a Valzinha tem passado é coisa de estarrecer até mesmo um brasileiro pobre, desses que já estão tão habituados às mazelas que nada mais os incomoda. O que vou lhe contar não é nenhuma história passada nos campos de concentração de Kosovo e a minha intenção não é deixar-lo deprimido. Quem sabe você possa fazer alguma coisa pela Valzinha, já que não pode fazer pelo resto?
Acho que você se lembra da Valzinha. Vocês chegaram a brincar juntos quando crianças, ela jogava bolinha de gude muito bem e chegou a te dar um soco no olho, porque você errou nas contas e levou três bolinhas dela, por engano, é claro. Pois bem, há mais ou menos seis meses a Val recebeu um primo dela do interior, o Cleobaldo, um sujeito bom que só vendo! Acontece, Fé, que o Cleobaldo estava com aquela doença, você sabe, aquela ... que a gente nem gosta de falar o nome, mas estava no começo, foi operado e passava bem. Para abreviar a história e chegar ao ponto que nos interessa: Cleobaldo passou bem por uma semana quando começou a sentir dores no local. Aí começou o calvário dos dois, da Valzinha e do Cleó ( que é como nós o chamamos). Foram seis meses de idas e vindas ao médico, e toma novalgina, e toma resprim, que é gripe, nâo é da minha competência, quem operou é que sabe, e faz exame disso e faz exame daquilo, deu nada não, é psicológico, ta tudo bem, e etc e tal. Enquanto isto a dor psicológica do Cleó fazia ele urrar, e onde não tinha nada começou a inchar, os pobres dos médicos começaram a perder a paciência com a Val zinha o que fez cleó ficar com pavor de marcar consulta.
- Uê, Val, não pediram uma tomografia computadorizada?- Perguntei, já que todo mundo sabe que hoje em dia um exame desses vasculha todo o local e pode dizer mais ou menos com certeza qual é o mal. Não pediram. Alguns médicos devem ter visão de raio X e estômago de avestruz, porque enquanto Cleó desfalecia de dor, a boca travada, (quase não abria mais) eles receitavam comprimidos que dificilmente passariam pela abertura que ficava.. A Valzinha não ousava perguntar por onde ele deveria tomar os tais comprimidos, acostumada já à respostas malcriadas. Bem, Fé, depois de seis meses de muito sofrimento, descobriram que Cleó deveria ser operado de novo, porque o tumor tinha voltado. E tinha que ser rápido. Não sei exatamente o que eles entendem por rápido , já que entre a descoberta do tumor, os exames pré cirúrgicos foram quase trinta dias.
- Mas cadê a guia do médico?
- Taqui, o.
- Ah não! Desse médico não serve. Tem que ser do último que o atendeu.
- Mas ele ta de férias!
- Tem jeito não. Só com a guia do médico.
A Val é muito jeitosa, você sabe, e quase nunca perde a paciência e agüentou firme.Bem, finalmente conseguiram a tal guia, exames prontos ( alguns a Valzinha tirou dinheiro da aposentadoria para pagar e adiantar o expediente, porque senão só daqui há alguns meses), e finalmente, o médico deu o veredicto: tem que fazer quimioterapia e só depois operar. Cheias de confiança fomos ao Hospital, marcar o início do tratamento. (Fui junto, porque fiz amizade com o Cleó e queria vê-lo sem aquela maldita dor o mais rápido possível). Santa ingenuidade!
-Não há vaga.
- Cumequié?!!
- O governo cortou 30% da verba para os hospitais e como este é um tratamento muito caro, o SUS, por sua vez, cortou as vagas para a quimioterapia.
- Minha filha, acho que a senhorita não está entendendo. O meu amigo está com a guia do médico, ele PRECISA URGENTEMENTE deste tratamento, porque...
- Não posso fazer nada. O próximo!
- Escuta aqui, sua! - Aí já era eu, Fernando, que não tenho tanta paciência quanto a Val que me puxando pela blusa, murmurou:
- Calma, Filó, ela não tem nada com isso.
Com um arrancão, me livrei da Val e gritei;
- E quem é que tem ? Onde está o responsável por isto?
A atendente me olhou com desprezo e respondeu:
- Se não me engano, no plenário. Vão reclamar de quê? Não estão pagando nada! É tudo de graça mesmo.
- DE GRAÇA?!! Quer dizer que o SUS é misericórdia? É um favor que o Estado está fazendo para os pobres, sua anta? Pensa que somos idiotas?
- Calma, Filó.
- Calma, uma ova! É por essas e outras que a gente não tem dignidade! Não tem nada de graça aqui não, sua... sua...! É tudo pago e muito bem pago! Eu exijo...
Aí veio o segurança e, mais uma vez, voltamos para casa de camburão, e a única coisa que eu pude exigir, foi um apoio para descer daquele carro alto demais. A Valzinha me fez tomar um chá de camomila e voltou a falar com o médico. Desolado, ele lhe respondeu:
- Sabe qual seria a solução para o caso do Cleobaldo, Dona Valzinha? Ele ter dinheiro. Estaria tudo resolvido.
Em suma, o Cleobaldo continua esperando que o SUS resolva se vai sobrar algum dinheiro para que ele tenha algum tratamento. Ele espera. Só não tenho certeza se a doença dele vai colaborar com a pitimba do SUS. A dele e a de mais quantos sejam os que neste momento passam pela mesma dor. E não é dor psicológica não, Sr. Fernado Henrique. É dor física, é dor moral de se ver no desamparo, de saber que se houvesse um pouco de sanidade nessa política, gente seria a prioridade absoluta, porque é de gente que se faz uma nação. De preferência, de gente saudável, bem alimentada e bem tratada.
Por falar nisso, você não prometeu que não cortaria verba nenhuma da saúde? Mais uma coisinha: e o dinheiro do CPMF? Dê uma olhada aí nas suas gavetas; quem sabe você guardou tão bem guardado que não está encontrando? Tem jeito de fazer alguma coisa pelo Cleó? Pela Maria? Pela Joaquina?
Um beijo, desolado, da sua mãe que paga o INSS direitinho, graças a Deus, Filó.

Pé da Serra, 22 de fevereiro de 1999
Querido Fé.
A vaca foi pro brejo, não é meu filho? E não foi por falta de reza. Fiz novena e até trezena mas parece que nem Santa frase “se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, diga ao povo que eu deixo Nova York e vou para o reino tupiniquim, ganhar essa mixaria para tira-los do atoleiro em que meu ex-patrão os deixou”. Não acredito naquela fofoca do Krugman, mesmo porque esse tal entende muito de economia mas nada de santos. E o Fraga é um santinho. Deixe que falem à vontade, meu filho. É tudo inveja e olho gordo.Eu queria te fazer um pedido e estou meio sem jeito. Sei que você está passando aperto como todo brasileiro, mas sei também que, pelo menos seu emprego não está ameaçado, que você tem carteira assinada e deve ter até vale transporte e cesta básica. (Graças a Deus!) Mas acho que sua situação ainda é melhor que a minha porque comprei uma geladeira nova o ano passado, e as prestações são em dólar. ( Como é que prestações de geladeira podem ser em dólar, eu não sei, mas tanta coisa estranha tem acontecido depois que o real caiu na real, que não tenho como discutir). Na verdade preciso de alguns dólares emprestados, porque a prestação está atrasada. Você tem algum para me ceder? Te pago na cotação do dia, assim que puder. Quando vou poder? Só Deus sabe, mas você não vai ficar no prejuízo. Pelo menos você vai ter certeza de que alguém te deve alguma coisa. O povo aqui de Pé da serra e cercanias acha que você lhe deve, mas eu não sei o quê. Que eu saiba ninguém aqui te emprestou nenhum dinheiro, mesmo porque quando você precisa de algum não pede emprestado, você enfia a mão no bolso do coitado, sapeca-lhe impostos e pronto. Pena que a gente não tenha este meio de conseguir dinheiro para pagar as nossas dívidas . Seu nome já foi pro SPC? Tomara que não, Fê, senão nem este seu amigo milionário, o FMI, vai lhe dar crédito. Por falar nisso, sujeitinho agiota este daí, hem? Lembro o dia em que seu pai tomou emprestado do Sr. Tomaki Dalá ( aquele judeuzinho de uma figa) uma quantia para pagar a hipoteca da casa, com juros de 10%. Naquele tempo juros de 10% eram próprios de agiotas. Hoje qualquer Banco cobra mais que isto e não são chamados de agiotas. Bem, seu pai passou a maior magrela para pagar, além de ver o Sr. Tomaki Dalá todos os dias na nossa porta, conferindo o que estávamos gastando, se tínhamos comprado rádio novo, essas coisas, igualzinho ao seu amigo o FMI. A diferença é que seu pai passou noites e noites sem conseguir dormir, depois deste empréstimo. Parece que com você não acontece a mesma coisa, porque você tem dito aos quatro cantos que dorme como um anjo. Para mim você dorme como um irresponsável. Como alguém que deve a um agiota desses consegue dormir? Será porque não é você quem vai pagar a dívida? Tem uma idéia de quem seja? Seu pai enfim conseguiu pagar e dormiu em paz jurando nunca mais tomar nada emprestado. E pagou com o suor do próprio rosto. Nem suar você sua. Tenho uma vaga idéia de que esta sua dívida vai ser paga com o suor e sangue de gente que nem conhece este tal de FMI.
Tia Cotinha manda perguntar quando é que sai a pensão do tio Clodoaldo. Tem mais gente querendo saber a mesma coisa, mas eu iria gastar muito papel e papel já subiu, como tudo o mais. Dê um beijo no Fraga, vê se pode me mandar os dólares, senão eu perco a geladeira.Tem ido à missa?
Um beijo da sua mãe, apesar de tudo, Filó.Edwiges acredita mais em você. Sou sua mãe mas não sou besta, e pra te ser bem verdadeira não acho que Santa Edwiges está errada. Também não é certo passar suas responsabilidades para os santos, mesmo porque eles não entendem nada de economia.Nem eu. A única coisa que sei de economia é que, se eu gastar mais do que ganho, naturalmente vou ficar em palpos de aranha. Parece que você é que não sabe disso. Outra coisa que você parece ter esquecido são as lições da escola de sociologia, porque você é um sociólogo, não é meu filho? Tomara que você aprenda alguma coisa com esse seu novo amigo, o Fraga. Ele tem uma cara de Santo Antonio, e um jeitinho meio ingênuo. Ele é? Parece ser um bom moço e deve ser muito altruísta, senão um herói nacional, que nem Tiradentes .Para deixar um emprego onde ganhava 700.000 dólares por ano por um de menos de 80, tem que ser muito bonzinho e patriótico. Imagino que ele disse aquela

Pé da Serra, julho, 2000

Querido Fernando.

Como vão todos daí? E você? Tem me parecido abatido. Não é para menos, não é meu filho? com toda essa balburdia que está o país que vc governa, não tem santo que agüente. Contudo, eu tive umas idéias que podem ser a salvação da pátria e antes que o galo cantasse, para não me esquecer, vim escrever. É o seguinte, Fé: tenho ouvido na televisão que um menor abandonado custa aos cofres públicos, 1200,oo ao mês. Fiquei com isto martelando os meus neurônios que sobraram e até agora não entendi. Sei, de fontes fidedignas que o filho daquele seu amigo, o Maximiniano ( lembra?), foi para a capital fazer a faculdade de veterinária. Ele, o Maximinianozinho e mais 5 colegas alugaram um apartamento, onde vivem, com telefone e tudo. O pai dele me garantiu que tem um total de custos com o filho na faculdade ( ele paga tudo, porque o zinho não trabalha) de 1300,00 mês! Eu disse que não acreditava, porque você paga por um menor abandonado na Febem, 1200. E olhe que na Febem, eles nem tem telefone, ou banho quente, e nem quartos separados, nem roupas limpinhas e muito menos pagam faculdade. Como é que pode? Mas o Maximiniano fez as contas - é certo que ele não usou uma calculadora, porque parece que já tem tudo na cabeça- e foi enumerando: aluguel do apartamento( dividido por cinco) comida ( contando também os Mac Donalds) transporte, enfim, tudo o mais que um adolescente precisa para viver com dignidade e até conforto. E mais: fiquei sabendo também que o que vc paga por cada menor abandonado é menos do que pagaria por uma escola particular nos EEUU! Cumequeipode!! De duas uma: ou o Max está gastando pouco, ou vc está gastando demais. A idéia é: acaba com a FEBEM, aluga vários apartamentos para cada grupo de cinco meninos e pronto. Certamente, se eu te falar para pagar os estudos deles também, vc vai dizer que já estou esbanjando, então vai sobrar algum dinheiro, é claro. Ou então matricula essses meninos numa escola em Ohio. Vai ficar muito mais barato e os meninos muito bem servidos. O mundo inteiro vai falar bem de você. Resolvida a questão dos menores abandonados, quem sabe vc possa dar uma olhadinha nos velhos abandonados? Gostou da idéia. Não tem de quê. Conte sempre com a sua mãe, amorosa e econômica, Filó.
PS. Se quiser economizar também com o marmitex dos presos ( fiquei sabendo que vc paga 6,00 por um marmitex!), na capital tem um restaurante popular que cobra 1,00! E a comida é muito boa, mas se vc quiser melhorar , tem self-service por todo lado e um marmitex não sai por mais de dois reais. Bom, não é?

Pé da Serra, 10 de Março de 1999
Meu querido Fernando
Como tem passado? E a Rutinha, vai bem?Estou tão preocupada com você, meu filho! Tem certeza de que este vírus não é aquele do México? No princípio parece uma gripezinha à toa, e depois faz um arraso danado. Nós aqui de Pé da serra mandamos celebrar uma missa de sétimo dia para o real e foi tanta gente que o Frei Inácio ficou até emocionado. Ele era muito querido, né Fê? Uma pena que tenha acabado assim. Mas a vida é assim mesmo, uns vão outros vêm e a vida continua. Você não me mandou os dólares que pedi emprestado mas eu entendo. Não deve estar podendo muito, e o dólar tá caro demais. Não perdi a geladeira porque ameacei o gerente da loja com um cabo de vassoura e ainda disse-lhe que se não esperasse mais um pouco até eu receber a aposentadoria e poder saldar minha dívida, eu iria jogar uma praga daquelas de mãe! Nunca mais ele ia vender sequer um liquidificador, quanto mais uma geladeira. É claro que não joguei a praga, que eu não sou dessas coisas, voc6e sabe, mas parece que pegou assim mesmo, porque desde esse dia não entra viv'alma na loja do coitado. Ele veio aqui em casa pedir para eu desfazer a macumba ( imagine) e até rasgou as promissórias que eu devia. Tentei explicar que sou católica apostólica romana e que nunca fiz uma macumba sequer em minha vida, mas o coitado não acreditou. Disse que só podia ser macumba e das grossas. daquelas com vela preta, fita vermelha e Cidra Cereser. Mas não foi, Fernando, eu juro! Servi um cházinho de camomila para ele, e prometi fazer uma novena para seus negócios melhorarem. E fiz. Aquela de S. Judas Tadeu, poderosíssima. Daqui de casa eu vi, três dias depois um senhor entrando na loja. Fiquei toda feliz, achando que S. Judas já tinha feito o milagre. Não era milagre nem era um comprador. Era um fiscal da Receita que acabou por arrancar do coitado o que restava de suas parcas economias. Quem tá fazendo macumba agora é ele.
Para piorar as coisas, não sei se você sabe ou se esqueceu, mas Pé da Serra fica em Minas. Essa sua briga de comadres com o tepetudo tá resvalando para uma catástrofe. Será que isso é uma nova Inconfidência Mineira? Você não está pensando em esquartejar o pobrezinho e espalhar suas partes por Brasília, está Fernando? Acho que aconteceu com o Itamar o mesmo que aconteceu comigo e com a geladeira. Eu não tive dinheiro para pagar e tentei falar pro gerente com bons modos, mas ele não quis me ouvir. Só depois do cabo de vassoura e da ameaça de praga ele cedeu. O topetudo já te ameaçou com uma vassoura? Rogou praga? Então vê se resolve essa quizumba de uma vez, porque se ele resolve fazer isso, vai que a coisa pega. Se eu, que não sou topetuda, com uma simples ameaça coloquei a loja do Frangão em concordata, imagine ele, com aquele topete todo! E eu não vou mais fazer novena que já não aguento mais de tanto rezar.
De qualquer forma, meu filho, se começar a sentir uma soneira sem quê nem porquê, se achar que nem o santinho do Fraga resolve o seu problema, venha aqui no centro de Inhá Lica, fazer um descarrêgo. Você sabe que não aprovo essas coisas, mas se santo nenhum dá jeito,vai ver que essas coisas não são da alçada deles. É preciso partir para outro departamento. quem sabe algum desafeto fez uma macumba para você? O Itamar? Não acredito! Ele é católico. Mas praga até católico pode rogar. falar nisso, tem ido à missa? Um beijo na Rutinha, no Fraga e no seu amigo rico, o FMI.
Da sua mãe fervorosa, Filó.

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