Querido Amigo




Eu devia fazer aqui uma lista das pessoas que amo e que amei durante a minha vida. Não posso. Sou muito distraído. Sou capaz de não citar exatamente aquelas que mais amo. Estranhamente, o que mais me toca, mais se esconde de mim. Se, entretanto, você está lendo isto, é certamente uma das pessoas que amei e, suponho, continuarei amando, eternidade afora.

É claro que estou escrevendo enquanto ainda estou vivo, mas é claro também que enquanto você lê o que escrevo vivo, estarei morto ha algum tempo. Não lamente por mim. Se no princípio da vida temia essa visita, ela era mesmo indesejada, aqui, onde me encontro, espero-a com quase serenidade. Não que eu goste dela. Aceito-a, como inevitável. A morte é um direito universal e teria me poupado muita dor se tivesse acreditado nisto antes. É sopro que alivia a dor eterna. Dói em ti, mas não dói em mim. Isso não te alivia? Limpa a tua alma da dor, como quem lava um chão de muito tempo. Perfuma os cantos da sala com a saudade que é mansa e que é boa, fecha o livro neste capítulo que a todos perturba - mais por hábito que por verdade - chora por ti, mas não por mim. Tanta vida, tanta vida! Não há sofrimento sem matéria que a suporte. Não há dor na morte, senão a que a tua própria opinião força. A agonia é da vida – bem sabes disso – e não da morte. A morte é doce, amigo, como um final de peça, como o cair do pano, como o fechar da porta. É depor as armas, é o final da luta, é o tratado de paz. 
A razão diz, mas o coração teima. Que seja. Não cedas ao canto de sereia da saudade. Deixa que a dor por si só se iluda e, se sentires a tentação do luto, lembra-te: hasteei a bandeira branca, enfim. Viver é muito cansativo. Morrer,  ainda não sei, mas ter morrido deve ser fantástico.

Não lamente também a minha vida. Fiz o que pude fazer com ela. Nem mais nem menos. É certo que nada mais fiz do que driblar constantemente a angústia de estar vivo. Foi a minha forma de sobreviver. Cada um tem a sua. Se pudesse começar de novo, não faria nada diferente. Mesmo porque, recomeçando, eu perderia a memória do que vivi e, fatalmente, faria tudo de novo, não por escolha, mas por determinação.

Alguma coisa desejaria não ter feito. O dia em que você chegou e ficou silencioso do meu lado, esperando algum sinal, e eu, mudo, fazendo de conta que você não existia, desejando que fosse embora logo e me deixasse em paz. Se pudesse, esqueceria o seu desaponto, o seu olhar perdido, os seus passos silenciosos escapando de mim, para não perturbar a minha paz. Esse momento, eu não queria ter vivido. Ou quando algum de vocês tentou me mostrar a própria angústia e eu, miseravelmente preso de mim mesmo, deixei que o silêncio frio e pesado lhe mostrasse que não me interessava a sua dor. Isso eu queria refazer. O resto não. As grandes escolhas não fazem muita diferença. As pequenas, aquelas em que poderia ter feito as suas vidas menos duras, estas sim, se pudesse recolher o fio e tecer de novo, faria com menos egoísmo. Pensar nesses momentos me dá a certeza absoluta de que os laços que nos ligaram na vida serviam para que eu desfizesse o nó que me ligava a mim mesmo e toda a dor que isso provocava. Outra vez, só fiz o que sabia, e só aprendi isso depois de ter perdido muitos de vocês para a visitante tantas vezes amaldiçoada.

Olhando daqui, faço uma estranha descoberta. Se fui feliz ou infeliz não devo isso a nenhum de vocês. Nada se fez senão dentro de mim mesmo, as circunstâncias e aqueles que faziam parte delas, eram palco e coadjuvantes da minha história. Como eu fui das suas. Muitas vezes chorei por tê-los perdido, vivos ou mortos, e tive raiva. Todos vocês apenas viviam a própria vida onde eu era coadjuvante. Ou morriam quando deviam morrer. Tão simples.

Não deixei muitas coisas, nada que dê trabalho. Felizmente o que juntei na vida não dá um inventário. Meus livros, meus papéis, tudo aquilo que guardei desajeitadamente, não deve ter mais importância para mim. Pode doer para vocês, como dói para mim, olhar o chinelinho de Elise, ou ver a letra dela num bilhete. Decidam o que fazer com o que sobrou. Imaginem que, se existe outro lado, ele é fatalmente melhor que este - isto se, porventura, vocês não acreditarem no inferno - e se não existe, o nada é melhor que tudo que não entendo e que, por não entender, sofri. Não há desventura em estar morto.

A você, minha amiga, devolvo o que lhe é de direito. Todas as cartas que me escreveu, desde janeiro de 1965 até a última que, talvez, eu sequer leia, não por descaso, mas por ter ido ao encontro do grande enigma, a Velha Senhora. Certamente ela não terá mais paciência comigo ou com os meus pedidos de adiamento. Talvez a enerve com a minha falta de resistência. Talvez adoce a sua natural acidez. Quem a conhece realmente, se quando ela chega, já estamos sem sentidos? Sinto seu hálito na minha nuca enquanto lhe escrevo, apressado. Ouço a voz da minha mãe e o seu vulto impreciso roça o meu braço descarnado. Tenho tido sonhos confusos onde me encontro com todos eles, os que já foram antes de mim. Dizem que é um sinal. Minha vida se dissolve como gelo ao sol e nem sequer sofro. Espero. Agora com impaciência.
Seu, sempre, para a eternidade afora, se houver, W.
P.S. As cartas de minha autoria, as que me enviou generosamente, queimei-as. Não desejo deixar nada aqui. Quero passar como quem sequer existiu. Sei que é possível. Impossível é a eternidade.

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