
Sem desgrudar o olho do crochê, Clô perguntou assim como não quer nada:
- Você já se decidiu, Ma?
- Já. Eu não vou tomar esta merda desta vacina contra a gripe.
- Não, Ma. Já decidiu se vai votar sim?
- E eu não tenho que votar, Clô? Não sou obrigada a votar?
Clotilde tinha a virtude de nunca perder a paciência nem o ponto. Já contei que ela faz crochê sem tirar o olhos da televisão? Então. Eu morria de inveja, que não sou lá essas coisas com a falta de entendimento de outras pessoas, para não falar outra coisa e não consigo fazer tricô sem olhar. Sempre achei que Clô tinha parte com o capeta, mas dessa vez ela estava passando dos limites.
-Cê sabe do que estou falando. – Disse com aquela calma de asno debaixo da sombra do ingazeiro florido. (que coisa mais linda!) – tô falando das armas. Cê vai votar sim?
Senti aquela espécie de fogueira subindo pelas orelhas, aquela que pré anuncia o caldo entornando. O chiado nos ouvidos já tinha começado. Tentei não me tornar violenta e neste absurdo perdi uma carreira inteira do cachecol. Mesmo assim, ainda falei num tom meigo, embora a língua estivesse travada nos dentes trincados:
-Clô, fia, não insiste nesse assunto porque a minha paciência está indo pro saco. Vota sim, vota não, vota quem sabe, vota talvez, mas não me torra a paciência com esse assunto, que não sou palhaça!
O 'palhaça' já saiu meio esganiçado, e nem me dei conta a não ser quando Clô me passou um rabo de olho com uma cisma de contrariedade. Comecei a ficar em pânico. E me disse naquela vozinha de avó do chapeuzinho vermelho:
-Não se ofenda, Matilde. Eu só queria saber a sua posição. Posso não?
-Pode! Claro que pode! Tanto pode que já me perguntou a mesma coisa um milhão de vezes e um milhão e trezentas mil vezes eu já respondi que voto Não! E esse papo furado é só para tentar me convencer a votar sim. Pensa que não sei?
-“Um homem que consegue andar com uma arma sob uma camisa não merece o cérebro que tem” – Você me disse isto...
-Não fui eu. Foi o Einstein. E não foi exatamente isto. Foi: “um homem que consegue marchar ao som de uma melodia marcial não merece o cérebro que tem” Ou é mais ou menos isso. Que é que tem uma coisa com a outra? Que é que tem?
- Tudo. Você sempre foi pacifista.
- E sou! Por isso mesmo eu voto não.
A serenidade da Clô? Eu não sei, juro que não sei onde foi parar e como começou a refrega. Antes que eu piscasse duas vezes nós estávamos atracadas no chão, aos berros de vota sim! voto não! até que eu a ameacei com a agulha de tricô em riste, como um punhal.
-Larga isto!! Berrou com sua vozinha de gralha. - Larga esta arma! Larga esta arma! ! Vai ter que me perfurar o bucho para que eu vote não , sua, sua...!! Polícia! Polícia!
-Pois sim! Estou sob forte emoção, e estou armada! Nem o capeta me tira esta arma!
Clô conseguiu pegar a sua agulha de crochê e me deu uma espetada no dedão do pé, que as pantufas já estavam, uma na janela, outra sobre a toalhinha de crochê em cima do rádio. Eustáquio, o gato, escapuliu pela porta por onde entravam os vizinhos, um exército de 'deixa disso' que só vendo pra crer.
Foi daí que começou o referendo “ você quer a proibição das vendas de agulhas de tricô e crochê no Brasil?” Não sei a fonte por isto me recuso a referendar, o fato é que dizem que começou também o referendo “você quer a proibição de biritas e tira gostos no Brasil?” porque as estatísticas tem provado que 50% das mortes nos botecos foram causadas por tira gostos duvidosos e outros 50% por sujeitos devidamente alcoolizados ou pelas mulheres deles.
A Clô e eu fizemos as pazes e achamos por bem concordar os nossos votos. Os dois um NÃO bem positivo, é claro, dada a minha singular capacidade de argumentação, certas de quê não são as armas as culpadas pela violência. No meu caso foi a impaciência. No da Clô, a intransigência. Nos outros casos dizem que é outra coisa. No que eu e a Clô concordamos, pela primeira vez.
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