sábado, junho 19, 2004

FALTA ALGUMA COISA

A minha amiga Val é uma pessoa muito romântica.Tanto, que nunca teve um namorado na vida. Apaixonada ela esteve durante todos os dias. De dez em dez anos trocava de paixão. Nunca deu certo. Ia tudo muito bem até ela conseguir que o sujeito a beijasse. Isso entre o sexto e oitavo ano. Então, tudo acabava. O beijo era uma decepção. Podia economizar anos de paixão não correspondida se beijasse logo no primeiro ano. Ou no primeiro mês. Era o beijo entrar pela boa e a paixão sair por não sei onde.
-Vai ver você abre o olho na hora e ver a cara da alguém em zoom não é lá muito romântico. Pode até dar de cara com um cravo...
-Não. Não abro não. Falta alguma coisa... sempre. Não é nada do que eu esperava.
- Você não se concentra, deve ser isto... fica pensando em outra coisa.
- Ora, Tê, como é que eu vou pensar em outra coisa numa hora desta? Não é isso não... falta alguma coisa.
- Difícil. – Ficamos em silêncio. Eu tentando achar a razão, uma explicação que fosse para o bizarro fato de um beijo por fim a mais inflamada paixão. Ela, acho, imaginando quem seria a próxima vítima.

A Val tinha a mania de associar uma música para cada momento de sua vida. Ou para cada paixão. Enquanto me conta timtim por timtim seus casos amorosos, há sempre uma música de fundo. Ela coloca. Para ficar igual às novelas, diz, e acha muito graça. Ela tem esta singularidade, que particularmente me encanta: tudo é muito engraçado, ainda que seja romântico. Feelings fora e ainda era a música do Vinicius, um sujeitinho atarracado, solitário, estranho e vítima por dez anos da paixão romântica da Val. Lutou desesperadamente contra qualquer aproximação física, o tal, tanto que a Val conseguiu ficar apaixonada por todos os dez anos. Até o dia em que, entre um pedaço de pizza fria e um gole de coca cola, - ela sempre ficava amiga de suas paixões – aconteceu o beijo. Acabou. Nem ela nem eu conseguimos ouvir Feelings sem mudar de estação. Ela por motivos óbvios. Eu, por que não agüento mais mesmo. Além disso ela guarda bilhetes, papel de bala, retratos, tudo que venha da pessoa em questão. E faz um altar onde imola e adora o seu ídolo enquanto for o tempo dele. E os sujeitos são sempre muito complicados.

Teve um que era homossexual e a Val sabia disto. A paixão durou até o primeiro beijo. O primeiro que ela viu ele dar num amigo bigodudo. Um outro era pastor de uma Igreja que não me lembro o nome, uma benção, segundo ela, mas casado, bem casado e gostava muito de mocinhas loirinhas de 20 anos. A Val não é uma coisa nem outra. O outro estava em fase terminal. Tinha Aids. Este amor durou apenas alguns meses e não houve beijo. Ele não tinha mais forças. Tive medo de que a Val ficasse eternamente apaixonada. Não ficou. Hoje ela diminuiu drasticamente o tempo de suas paixões. No máximo um ano. Lasca o beijo e pronto. “O tempo é curto�, me diz alegremente, “e eu tenho que me casar antes de envelhecer�. Ela é do tempo em que para se casar era preciso fazer um enxoval. O dela já está pronto há, seguramente, uns 30 anos.

- Quem sabe é este enxoval que dá azar – disse, quebrando o silêncio. A Val mastigava um pão de queijo, esparramada no sofá e acho que nem me ouviu. Procurou avidamente o botão do som e disse, meio irritada.
- Como é que você consegue ficar nesta casa sem uma musica? Coloca alguma coisa aí...
- Já sei! – Pulei do sofá. Já sei o que falta nos seus beijos! É por isso que você não continua apaixonada! Falta o fundo musical!
Ela parou o pão de queijo no ar, com os olhos arregalados e caiu na gargalhada.
-Ora, Tê! Só me faltava esta! Deixa de bestagem! Coloca uma música aí. Aquela do Vinicius...
-Feelings????!!- Ela revirou os olhos:
-Vinicius de Morais, Tê.

Não tocamos mais no assunto o resto da tarde. Havia uma coisa estranha no ar e às vezes o olhar dela saia pela janela e se perdia. Ouvimos “Eu sei que vou te amar� uma trezentas vezes. Eu já estava quase me apaixonando pelo retrato do meu tio Gaspar na estante. Antes que anoitecesse, Val pegou sua bolsa, deu umas voltas pela casa, como se quisesse me dizer alguma coisa antes de sair. Rodou, voltou, parou na porta e disse, por fim, timidamente:
-O Júlio vai lá em casa esta noite. Pode me emprestar o Vinicius com Toquinho?

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