quarta-feira, dezembro 08, 2004

IINSENTIVANDO A LEITURA?

Ontem, na Rede Minas (TV educativa, TV cultura, sei lá) peguei o trem andando num debate com um sociólogo e uma professora de literatura da sobre alguma coisa como o velho e tenebroso “incentivo à leitura�. Perdi o sono tentando avaliar a discussão. É tão claro o quanto tudo isto é absolutamente inútil que não entendo onde está a trave do olho destes doutores em literatura.Não há campanha no mundo que faça alguém ler. A chave que abre a primeira página não está na mão nem de pais, nem de professores, nem de sociólogos nem de ninguém. A chave está oculta nos pequeninos e desajeitados meninos de poucos anos.

Ninguém coloca um livro nas mãos de um menino. O livro é que o encontra e aí, sim, é para sempre. Tentei me lembrar do meu primeiro livro, do meu primeiro contato. Talvez eu tivesse um pouco mais de sete anos e tinha acabado de aprender a ler. A casa da minha avó não tinha livros. No quarto do meu irmão sim. Um lugar sagrado onde era proibida a entrada. Pelo menos enquanto ele estivesse por perto. Abri a porta do meio de um armário – acho que era um guarda roupas, não sei – e peguei o primeiro livro da minha vida. É certo que não consigo ordenar na minha memória o que foi exatamente o primeiro, porque eram três. O livro que li aos poucos, sorrateiramente, enquanto meu irmão não vinha, não sei o nome. Tinha uma capa avermelhada e o desenho de um roseiral. No centro a figura de uma rosa com o olhar triste, as folhas fazendo os braços, a saia,e fiquei ali extasiada com o desenho. Não me lembro da história. Devia ser um livro infantil que meu irmão, pré-adolescente, guardava. Ele guardava tudo ou quase tudo com um estranho zelo de velho. O outro foi uma revista com a história do Príncipe Valente. Também não me esqueço da capa. Não era um livro, era uma revista em quadrinhos, mas para os meus sete anos, era um livro. O terceiro foi a Montanha, este eu li com permissão. Sem desenhos que me encantassem, a não ser o da capa, não sei quanto tempo levei para ler, mas sei do encantamento. Eu estava no centro daquela montanha, perdida com aqueles meninos, e não havia jeito e escapar.

Depois disso, me lembro do terceiro ano primário e do livro curricular “As mais belas histórias�. Quando abri o livro, enquanto arrumava as minhas coisas para a aula, não parei de ler enquanto não terminei todas as histórias. E fui atrás do segundo volume que seria do quarto ano. Eram histórias com aquele fundo moral, como pequenas fábulas, onde você aprendia que o certo é bom e bonito, e o errado é mal e feio. Das histórias que ainda me lembro havia uma que me fazia chorar: como foi criado o colibri. Uma que me tirou quase definitivamente os palavrões da boca porque a menininha do desenho tinha sapos saindo da boca enquanto a outra que dizia coisas meigas e bondosas vomitava rosas. Francamente eu preferia vomitar rosas. Tinha também a da menininha que buscava leite e deixava entornar pelo caminho: não adianta chorar sobre leite derramado. E a do João Felpudo, o menino que não gostava de tomar banho ou pentear os cabelos. Morria de pena daquele menino, e tinha raiva das outras crianças que riam dele – as crianças da história. Se me esforçasse mais um pouco acabaria me lembrando de todas. Mas não vem ao caso. A maioria das crianças da minha sala lia as histórias sob a ordem da professora e em ordem. E não gostava disto. Não tinham tempo para histórias.

Não sei onde está a diferença, mas existe. Não acho que esta diferença seja a meu favor. Muito pelo contrário. Alguma coisa no meu cérebro, enquanto eu lia, me afastava da realidade, e eu começava a fazer parte de outra história. Só não digo que sofro alguma espécie de esquizofrenia porque a realidade fica ali do lado esperando fechar o livro. É uma forma especial de doença mental, acho, dos leitores em geral. Ninguém me incentivou. Ninguém esfregou livros na minha cara. Não cresci entre livros, a não ser os minguados volumes de uma prateleira do meu irmão. Ele também veio antes de mim, sob as mesmas condições. A primeira biblioteca da minha vida foi aos 11 anos, biblioteca digna deste nome. Havia as do grupo escolar, um pouco maiores que as do meu irmão, mas qualquer um pode imaginar o que era um biblioteca das escolas públicas, ainda naquele tempo. No entanto eu lia. Avidamente. Ia atrás. Procurava. Enquanto as outras crianças se comunicavam entre si, eu lia. Escapava, acho. Se isso foi bom? Não foi. Não aprendi o que tinha que aprender. Enquanto as outras crianças brincavam, conversavam, brigavam, faziam as pazes, aprendiam o essencial para viver solidamente neste planeta, eu estava num mundo de personagens mais fáceis de lidar, estruturados, concretos, que não me olhavam nos olhos, nem se importavam com meu silêncio.

Mesmo assim ainda penso que poderia ter sido diferente apenas se eu tivesse nascido diferente. Não acho que você escolhe ser um leitor. Você nasce leitor. Não tem escolha. A não ser que nunca dê de cara com um livro o que é definitivamente impossível. Entretanto, todas as pessoas que nascem com condições para viverem de forma mais fácil e adequada, podem viver entre montanhas de livros que não serão leitores. Não há nelas aquele defeito genético que as faça tomar um trem para o interior de um livro e aí ficar quanto tempo for preciso para não ver o resto. E gostar disto, o que é pior.

Sei de pessoas que nasceram leitores e não desenvolveram o “vírus�, por falta de ambiente propício. A minha mãe, por exemplo. A minha avó era o anticorpus necessário para que ela não se contaminasse. A minha avó era uma mulher que sabia criar e manipular seus personagens - a minha mãe era um deles – e desenvolveu uma espécie de ojeriza por livros. Sobretudo os que a minha mãe tentava ler. Por um instinto qualquer ela percebia que seria por ali que ela escaparia. Tentou comigo. Chegou a esconder meus livros para que eu não perdesse meu tempo lendo ao invés de sair com outras meninas e conhecer alguém com quem me casasse e completasse o personagem que faria de mim. Escapei por pouco. Por teimosia. A minha mãe não. A minha mãe teve que enfrentar o outro e conseguiu. Não sei se teria sido mais feliz se se contaminasse. Acho que não.

A arrogância dos jovens presumidamente evoluídos, aqueles que acham o resto do mundo um exército desordenado de burros, porque não lêem ou lêem o essencial, são só isto: jovens. Que façam coleção de livros e não de medalhas esportivas ou de campeonatos de besteiras, é só uma variedade. Um pouco mais tarde eles saberão disso. Mas aí já é tarde.

7 comentários:

Mariteca disse...

Bom, eu adoro ler... Quando quebrei a perna, (9 meses de cama) eu parecia uma traça... traçava TUDO! Minha história foi diferente da sua... Minha madrinha me levou com uns 7 ou 8 anos numa livraria e disse que ia me dar um presente especial: um livro e que eu podia escolher... Lógico que eu não fazia idéia... Eu na minha santa ingenuidade escolhi "Os 5 porquinhos" da Agatha Christie... (ja era louca por bichos na época!) Foi uma dificuldade a primeira leitura... mas peguei o gosto!!!! Acabei lendo toda a coleçao dela! Como ja disse pra vc, sou neurótica com os meus livros! Ainda tenho a coleçao inteira numerada!!!!!

Anônimo disse...

O incentivo pode ser da parte de alguém, sim, se me permite discordar. Se alguém a quem a criança respeita e de quem gosta, demonstra prazer numa leitura e dá um empurrãozinho na criança nessa direção, muito provavelmente, o prazer será despertado. Há, porém, de se tomar cuidado com a primeira leitura indicada. Livros ruins, como filmes ruins, músicas ruins etc. afastam um potencial diletante. A propósito, me lembro bem do meu primeiro livro.
Marcos
www.esculachoesimpatia.zip.net

Anônimo disse...

Teca, morro de inveja!:) Ter seus primeiros livros da maneira organizada que você tem me deixa babando.Meu irmão seguramnte deve ter "os meus primeiros livros". Ele é como você, neste ponto.
A maneira como você foi apresentada aos livros é, sem dúvida, bem criativa. Aliás, como toda a sua vida.;)

Anônimo disse...

Marcos:
você pode ter razão e é por isso que gostaria de mais opiniões a respeito. No meu caso específico, com os meus dois filhos não funcionou. Eles sim, viveram entre livros,pequenininhos ainda tiveram muitos livros, solenemente coloquei nas maozinhas do mais velho a coleção de Monteiro Lobato, lia para eles,enfim... incentivei. Preferiram a televisão.:)
Talvez por isso esta minha opinião... também aquela coisa de que, quem consegue tirar prazer da vida, sobretudo as crianças,não querem "perder tempo" lendo. Quando alguém é incentivado e o efeito surge, concluo que é porque já tinha o "virus"...:)Abraço.

Anônimo disse...

O Anononymous aí sou eu, Teruska. Saco.

Mariteca disse...

Hehehehehhehe! Tbém tenho a coleçao do Monteiro Lobato devidamente numerada!!! (adoro numeros!) Já tentei ler pra Júlia... Ela ainda não entende, mas presta muita atenção!!!

Anônimo disse...

Teruska, você tem toda razão. Não conheço ninguém que tenha tomado gosto pela leitura do jeito que a turma do incentivo ensina. By the way, boas leituras e principalmente boas experiências em 2005. Um beijo.