quinta-feira, maio 20, 2004

A PRIMEIRA VEZ QUE MORRI

Anoitece e todas as coisas estão envoltas numa bruma escura, não sei se pelo horário ou porque olho daqui. Estou com um pouco de sono, e tanto tempo faz que a minha vista cansada não consegue a nitidez que preciso. Mas faz escuro, sim, porque anoitece, estou sentada na porta do banheiro e não ouço meus próprios gritos. Não sei se me vejo por dentro, e a escuridão aumenta descontrolável e eu grito, esperneando de solidão. Uma mancha quase branca se espalha por sobre a minha cabeça. É o meu vestido de fustão. Mexo as pernas descontroladas, sentada no chão da porta do banheiro. Eu tenho cinco anos e a minha mãe está do lado de lá daquela porta.

Tento, com desespero, encontra-la, acabar com o vazio e a dor da sua ausência. Estou perdida no buraco mais fundo dos meus cinco anos, na miserável tortura da eternidade sem ela, como se a dor fosse eu, unha e carne, sem remédio. Encosto o rosto no chão frio, há uma fresta entre a porta e o piso, e fico assim, como um rato, os olhos doendo de choro e tortura, torta, querendo a minha salvação, derretendo e me esgueirando como água suja por baixo da porta. Não vejo sequer os pés dela, nada, nem um pedaço que me alivie e continuo gritando, com a cara enfiada no chão.

Ela ouve os meus gritos e talvez se desespere, não sei. Não me lembro. Estou com muito medo para ouvir alguma coisa que não seja o meu desespero. Está escurecendo, estou sozinha para sempre na porta do banheiro, aquela porta que me separa definitivamente da minha mãe. Foi aí que ela chegou e eu parei de chorar. Tinha muito medo dela, daquela mulher que chegava sempre como uma bruxa que me daria uma maçã envenenada, enquanto a minha mãe, distraída, não via. Parei de gritar. Solucei ainda, aqueles soluços secos de quem chora por dentro, com medo, em silêncio. Ela teve que me arrastar pelos braços para longe daquela porta. Era a minha avó. A minha mãe também tinha muito medo dela, isto eu sabia e talvez por isto saiu do banheiro, enrolada no roupão.

-Porque é que ela está fazendo birra?
-Porque não gosta de ficar sozinha. Anda atrás de mim o dia inteiro. Não posso nem mesmo ir ao banheiro. – Minha mãe parecia descontrolada. E foi ali, neste exato momento, que meu destino entrou por um atalho e escreveu uma outra história da minha vida. Talvez eu chorasse tanto por uma espécie de intuição. A causa e efeito da minha perdição. Aquele seria o dia da minha maior e pior perda, a que eu nunca perdoaria a ninguém, se houvesse alguém a quem culpar.

Não me lembro do que conversaram, a minha mãe e a minha avó, mas não foi preciso muitas palavras para decidir o meu destino. Um pouco depois eu estava no banco de trás do carro da minha avó, ajoelhada, com as mãozinhas coladas no vidro, gritando de pavor, a figura, quase o vulto da minha mãe na porta, me vendo partir. Muitos anos depois eu soube que ela chorava. Mas naquele momento eu só via o seu vulto se distanciando, a voz da minha avó tentando me fazer parar de gritar, vez ou outra a sua mão, aquela mão envenenada procurando me atingir enquanto dirigia. Só agora consigo ver a dor da minha mãe. Só agora eu choro por ela, pelo que perdeu naquela noite, por obedecer sem resistência, porque não sabia que poderia fazer outra coisa.

Deitada na cama, voltada para a parede, eu não via a minha avó, mas ouvia a sua voz e a grande mentira, de todas a que me salvou naquela noite do hediondo terror que sentia. A minha pele se descosturava da pele da minha mãe e doía.

-Amanhã, bem cedinho, seu pai vem lhe buscar.

Dormi soluçando, aquele soluço seco de quem ainda tem esperanças. Na manhã seguinte eu voltaria para a minha casa, me agarraria para sempre nas pernas dela e se alguém tentasse me arrancar dali eu gritaria tanto que meu grito escandalizaria os vizinhos, a cidade, o mundo e, para não morrerem de vergonha, me deixariam ficar.

Mas meu pai não veio. Nem na manhã seguinte nem nunca mais. Não sei porque estranha morbidez eu marco a data exata de todas as minhas mortes. Naquele dia eu perdi a minha mãe, o seu olhar, o seu amor. Não o seu amor concreto, mas o verbo amar, que liga e divide, o colo que adula e consola da vida, a certeza absoluta de que, andasse por onde andasse, eu era a parte indissolúvel de um inteiro. Nunca mais aprenderia a conjugar este verbo com exatidão.

A primeira grande morte, a precursora de todas as vezes que morri sem me dar conta. E não havia ninguém nesse velório. A parte de mim que não doía ficou pregada naquela porta vendo a parte de mim , dilacerada, ir para um lugar onde jamais me alcançaria.

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