CORREIO
Belo Horizonte, junho ...(há muito, muito tempo.)
Querido amigo,
Esta noite não dormi. Passeia-a inteira lendo Memórias de Uma Moça Bem Comportada de Simone de Bouvoir. Amanhecia quando saà de casa. O Marguerita abria as portas, entrei e pedi um Martini. O garçon, com sono, me olhou estranhamente e me serviu, no balcão. Uns bêbados na mesa ao lado me olhavam como se não me vissem. Esperei ser violentada por suas gracinhas, mas não fui. Sai, meio zonza, não tinha comido nada, e andei até a escola. Atrás de mim não existia nada. Nem na frente, porque o prédio estava fechado.
Sentei-me na escada e esperei. Não li, não fiz nada. A moça bem comportada me lavou o cérebro e eu via a vida de outro jeito. Eu era o centro do universo, o umbigo do mundo e, se fechasse os olhos, nada existia. Era estranho e bom pensar nisto. Ou não pensar nisto. Só sentir. Tinha vontade de rir. O que tem importância, afinal? Eu? Mas eu porquê?
Acendi um cigarro e traguei violentamente. A vista escureceu e veio a náusea. Achei que ia morrer, subitamente, na escada da escola, sem ninguém para testemunhar e vomitei. Tinha que comer alguma coisa urgentemente e não tinha um tostão. Que estranha solidão me invadiu! A minha cabeça começou a doer, doer com a violência que eu bem conheço. Voltar para casa me parecia impossÃvel. Mas eu não podia ficar ali, e comecei a andar. Aquilo me parecia a pior e mais exaustiva tarefa que eu já empreendera.
A moça bem comportada já não tinha nenhuma importância. Importante era o meu corpo, a minha náusea, as minhas pernas bambas. Foi uma eternidade até ver a portaria do prédio, quando então me senti salva. Entrei, comi avidamente um pedaço de pão envelhecido e caà na cama onde dormi a manhã inteira sem ser perturbada por vovó. Antes, eu chorei um pouco. Me sentia a mais só de todas as criaturas. Nada, nada mais tinha importância a não ser uma mão que me acalentasse e me livrasse do medo de existir e de subitamente não existir mais. Como poeira soprada por um deus qualquer. E adormeci sem sentir, o que acho, é a mesma coisa que morrer.
Como a vida está confusa, W.! Como eu gostaria de não estar aqui, de não viver aqui, de estar em T..., há dois anos atrás, quando andar descalça na areia quente, ou não correr da chuva era a minha mais séria e mais trágica rebeldia.
Tristemente, sua sempre...
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