sexta-feira, março 19, 2004

PAPEL PICADO

Olha, eu não sei se Deus existe, mas eu acabo de vê-lo.
Você mentiu quando me disse que Deus é como um pai.
O que eu vi não é um pai. Não me castiga, não me bate na boca quando digo um palavrão - que você me ensinou – não diz não, não diz pode, não diz...
È por isto que eu tenho um pouco de dúvida, porque o que eu vi não me fez pedir perdão, não me pediu, nem me deu. Só se colou a mim e colado está. E calado.
Eu acabo de vê-lo e me dói um pouco a saudade dele. Você entende porque eu não sei se Deus existe?

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Passam multidões do lado de lá. Daqui eu posso ouvir os risos, as palavras, os soluços, os sons confusos da vida e da morte. Às vezes passam enterros e entra um cheiro de flores e velas pela fresta da porta; às vezes nascem crianças e entra um cheiro de talco e risos. Por minha janela, por tê-la aberta, nunca passa nada.

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Tudo o que eu queria era me sentir normal. Normal. Normal. Sem este desconforto de nunca estar no lugar certo. Com aquela alegria besta de que não ter nada mais a fazer do que viver. Sem perguntar. E depois morrer. Como se nunca tivesse vivido.

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É como se estivesse apalpando no escuro alguma coisa que não sei o que é, mas me mete medo.

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Eu sou dos que andam à margem dos caminhos e se me encontro às vezes, decomposta e morta como um peixe, não há culpa nem desculpa que me redima. E a minha voz vai e volta dando voltas, como novelos de lã cinza que eu mesma desenrolo entre os dedos é porque o tempo é só uma gruta escura e sem eco. E, se os meus passos, quando volto e repasso o tempo e o espaço que perdi andando, formam sulcos como veias sem sangue atrás de mim , é porque não há ninguém atrás de mim .

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Não são as nossas diferenças que me atordoam. Não sou calma, ponderada, sensata e organizada. O mais ousado ardil que conheço não é a mentira estipulada, mas a verdade nua e deslavada. E às vezes, muitas vezes, a sua vida me parece um perfeito rol de roupas sujas.

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Eu só quero a paz dos idiotas. O descompromisso de ser feliz. A desobrigação de ser coerente.
Eu não quero ser feliz,se já não fui, se nunca serei. Eu só quero a paz dos idiotas,a imobilidade dos idiotas que ninguém contesta. Eu quero o riso dos idiotas que ninguém obriga.Eu quero a ira dos idiotas que ninguém motiva. Eu só quero a irresponsabilidade da paz, como um idiota.

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